Anúncio

Cuiaba - MT / 21 de junho de 2025 - 11:45

Quina, quinina, cloroquina: origens e usos de um medicamento secular

Em 1638, o frei agostiniano Antonio de la Calancha (1584-1684) publicou na cidade de Barcelona a “Chrónica moralizada del orden de San Agustín en el Perú”, uma obra bem acolhida pelos seus confrades, que rapidamente foi traduzida para o latim e para o francês, e, um pouco mais tarde (1653), reeditada em Lima.

Em meio a uma longa narrativa sobre a vida agostiniana no Vice-Reino do Peru, o frei, num capítulo intitulado “De outras coisas singulares deste Peru”, escreve: “Produz esta terra um número incontável de ervas medicinais e raízes proveitosas […]. Dá-se uma árvore chamada “da febre” na terra de Loja [Equador], com cujas cascas, da cor de canela, se fazem pós que, tomados em bebida no peso de dois reais, curam as febres terçãs e quartãs; [tais cascas] têm produzido efeitos milagrosos em Lima”.

O despretensioso comentário do Padre Calancha é, provavelmente, a primeira menção impressa à árvore que ficaria conhecida como Cinchona officinallis, cuja casca se tornaria célebre no tratamento das febres intermitentes, sobretudo daquelas decorrentes da malária.

A descoberta do seu uso para o combate à malária é controversa. É certo que os índios preparavam um chá com o pó da casca da árvore e se serviam dele para debelar sintomas febris em geral; no entanto, não se sabe ao certo se os espanhóis aprenderam a utilizá-lo no combate à malária com os índios ou se, ao contrário, os nativos, que conheciam o seu uso contra febres em geral, aprenderam com os europeus a servirem-se dele para combater uma doença que desconheciam (a malária), mas cujos sintomas se assemelhavam aos de outras doenças que lhe eram familiares.

VEJA TAMBÉM:

Quanto ao nome da árvore, Cinchona, sua origem também não é pacífica. Durante muito tempo, acreditou-se que derivava do nome da segunda esposa do Vice-rei do Peru, Francisca Henríquez de Ribera, a condessa de Cinchón, que, acometida pela doença, teria se recuperado prontamente depois de beber o chá da casca indicado por um jesuíta. Estudos recentes, no entanto, revelaram que tanto a condessa quanto o Vice-rei Luís Jerónimo de Cabrera padeceram do mal e foram — o vice-rei antes de sua esposa — tratados com o pó da casca da milagrosa árvore.

Seja como for, à medida que as notícias da cura do casal se tornaram conhecidas na Europa, o nome da árvore fixou-se, cinchona, e o “pó dos jesuítas”, como então se dizia, gradativamente ganhou fama. A sistematização do uso, no entanto, veio de um lugar improvável: a anglicana Inglaterra, cuja cultura farmacêutica não tinha muita simpatia pelas contribuições jesuíticas. A história é conhecida.

Por volta de 1670, o renomado boticário Robert Talbor foi chamado para tratar o rei Carlos II, que há tempos sofria de febres intermitentes características da malária. Talbor ministrou ao monarca um medicamento derivado de uma receita que mantinha secreta, e que já havia dado provas de sua eficácia no combate às febres intermitentes.

O tal preparado não decepcionou, restabelecendo a saúde do rei e valendo ao boticário, em 27 de julho de 1672, a nomeação para médico da Real Câmara. Talbor não revelou a fórmula da receita até a sua morte, em 1681. Porém, seduzido por uma oferta do rei da França, Luís XIV, o médico inglês, pouco antes de morrer, vendeu o segredo para os franceses.

Coube, então, a Nicolas Blégny, cirurgião do rei da França e diretor da Academia das Recentes Descobertas da Medicina, tornar a receita pública, o que fez por meio de um escrito intitulado “O remédio inglês para debelar as febres” (1682). Aí, o francês já tratava a substância pelo nome que a tornaria famosa no mundo: quina – uma abreviação de quina-quina, que na língua quíchua significa casca.

A quina no mundo português

O prodigioso remédio não tardou a desembarcar em Portugal. É provável que os muitos jesuítas portugueses estabelecidos na América conhecessem a quina e seus usos medicinais, tanto por meio do contato com os indígenas, quanto por meio de seus irmãos espanhóis, com quem sistematicamente trocavam cartas.

Oficialmente, no entanto, a quina chegou em Portugal em 1681, quando veio parar nas mãos do rei D. Pedro II (1648-1706) as garrafas de um medicamento contra malária, acompanhado de um folheto explicativo denominado “Reflexões sobre a virtude da água”.

Enviado da Inglaterra pelo médico português Fernando Mendes, que trabalhava na corte inglesa para a então rainha D. Catarina de Bragança, também portuguesa, o escrito ensinava ao monarca como preparar e se servir adequadamente do excelente medicamento contra febres que tanto proveito trouxera ao seu cunhado inglês.

Eis o início da receita:

“Tomarão duas onças de quina-quina boa feita em pó, de fel da terra em pó três oitavas, de erva bicha em pó duas oitavas, tudo muito sutil e peneirado por peneira fina. Este pó se lance em vaso vidrado no fundo, e, ao depois, ponham a ferver em um tacho […] dois litros e meio de vinho de rum, ou em seu lugar de vinho de enforcado da Beira, ou do vinho mais frouxo que se achar, e, assim fervendo, o lancem sobre todos os pós, que estarão no vaso vidrado, e mexam por algum espaço com um pau de tamargueira e, ao depois, o abafem até o segundo dia”.

Mendes salientava que o remédio era infalível para todo o gênero de febres, poderia ser usado por pessoas de diferentes idades e de ambos os sexos e não causava mal a mulheres prenhes e paridas; em suma, tratava-se de um remédio de altíssima eficácia e grande qualidade:

“Tendo, pois, este remédio tantas vantagens sobre quantos até agora se têm descoberto e, consequentemente, tendo as prerrogativas que se requerem em um completo remédio, que é de curar com brevidade, com segurança e com suavidade, espero logre também a fortuna da benigna aceitação de S. Alteza, a cujos pés ofereço humildemente a receita”.

A despeito das indicações do doutor Mendes terem se mantido secretas por cerca de nove anos, o seu medicamento rapidamente ganhou notoriedade e as garrafas com a água inglesa passaram a ser vendidas nas casas especializadas e anunciadas na Gazeta de Lisboa, como informa a instrutiva nota publicada na edição de 4 de janeiro de 1720, onde se lê:

“Água de Inglaterra para sezões composta pelo seu primeiro autor, o doutor Fernando Mendes; vende-se somente na rua nova em casa de D. Ana Maria de Brito; faz-se esta advertência, por haver quem diga que vêm corruptas, o que se não tem achado no decurso de 40 anos que a dita D. Ana Maria de Brito as vende em sua casa”.

Embora D. Ana Maria vendesse o medicamento em sua casa havia quatro décadas, a receita original enviada da Inglaterra somente se tornou pública em 1690, na segunda edição, póstuma, do renomado “Correção dos Abusos”, do Físico-mor da Armada espanhola e carmelita descalço, Frei Manoel de Azevedo.

Desde então, a oferta do produto aumentou e os fabricantes se diversificaram, notabilizando-se as figuras dos médicos João Curvo Semedo, que deu ao seu apreciado produto o nome de Água Lusitana, e Jacob de Castro Sarmento, que acabou entrando para a história da medicina luso-brasileira como o “verdadeiro autor” da Água de Inglaterra.

O desembarque no Brasil

As primeiras menções ao uso da quina na América Portuguesa deram-se em meados do século XVIII: a primeira em 1735, no Erário Mineral, do cirurgião português Luís Gomes Ferreira, que atuou nas Minas Gerais durante duas décadas; e a segunda, mais completa, em 1747, na Relação Cirúrgica e Médica, do também cirurgião português João Cardoso de Miranda.

Baseado na sua longa experiência profissional nas mesmas Minas Gerais, Miranda, despois de prescrever a casca para tratar febres intermitentes em inúmeras circunstâncias, tornou-se um grande entusiasta do medicamento:

“Não tenho palavras com que manifeste as prodigiosas virtudes que tenho observado neste remédio, pois, compondo-o há dezoito anos, são inumeráveis as doenças a que o tenho dado, e também outros professores, alcançando sempre feliz sucesso […]; e isso basta para se poder dar com grande utilidade”.

O cirurgião diz que prescrevia o medicamento havia quase duas décadas e, certamente, antes dele, as boticas espalhadas pela colônia, uma colônia assolada pelas febres intermitentes – como mostram as correspondências jesuítas – faziam o mesmo.

O fato é que a partir da Relação Cirúrgica e Médica proliferam as menções à proveitosa quina na documentação colonial. Para se ter uma ideia da sua popularidade, vale mencionar que a Coleção de várias receitas e segredos particulares das principais boticas da nossa companhia de Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil (1766), um compilado de receitas farmacêuticas jesuítas utilizadas nos diversos colégios da ordem, traz mais de uma dezena de receitas contra febres à base de quina, entre as quais: a Água febrícula para terçãs e quartãs; o Bezoártico do Curvo singular contra febres malignas, da Botica do Colégio do Recife; a Massa para sezões da Botica do Colégio do Rio de Janeiro; e o Vinho febrífugo do irmão boticário Manoel Carvalho, do Colégio da Bahia.

Um pouco mais tarde, o carioca José Pinto de Azeredo, então Físico-mor de Luanda, ao redigir o seu Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola (1799), também tece largos elogios à quina, medicamento que conhecera e utilizara ao longo de sua prática médica no Rio de Janeiro:

“Estamos bem persuadidos que a facilidade com que hoje curamos as intermitentes [febres] provém da grande quantidade de quina que fazemos tomar os enfermos; porque dela fazendo já uso os anteriores, não tiravam as mesmas utilidades e vantagens, que nós alcançamos”.

Todavia, o mais completo estudo sobre a quina do período colonial, ilustrativo da importância e do conhecimento que então se tinha do outrora “pó dos jesuítas”, foi aquele produzido pelo mineiro Frei José Mariano da Conceição Veloso, intitulado “Quinografia Portuguesa” (1799).

Velloso, bem ao gosto do seu tempo – um tempo em que boa parte do que se escrevia era dedicado ao engrandecimento do rei e do reino –, oferece ao Príncipe Regente um minucioso estudo, no qual não somente sintetiza o que se conhecia sobre 22 espécies de quina (características e usos), como ainda instiga D. João a fomentar o descobrimento e o cultivo da árvore em solo brasileiro.

O opúsculo de Veloso, vale destacar, inseria-se numa longa série de estudos sobre a Cinchona que estavam vindo à público um pouco por toda a Europa, estudos que pretendiam compreender melhor a origem e a ação de uma substância de eficácia terapêutica, àquela altura, mais do que comprovada.

Os resultados não tardaram a aparecer; em 1810, o médico português Bernardino António Gomes isolou a cinchonina e, em 1820, os químicos franceses Pierre-Joseph Pelletier e Joseph Bienaimé Caventou isolaram a quinina. Uma vez conhecido o princípio ativo – a quinina –, a produção do remédio ganhou em precisão, padronizou-se e, consequentemente, aumentou a sua eficácia.

Casca da árvore de cinchonaCasca da árvore de cinchona (Foto: Imagem de GOKALP ISCAN por Pixabay)

Em terras brasileiras, a substância foi realmente posta à prova em 1828, durante uma longa e mortífera epidemia de malária, cujo epicentro foi a vila de Macacu, situada nas proximidades da cidade do Rio de Janeiro. O surto, que levou “terror e espanto” aos moradores da região, estendeu-se por diversas vilas e, por quase meia década (1828-1833), causou grande preocupação às autoridades.

Diante da persistência e da mortalidade da epidemia, D. Pedro I resolveu enviar para o local uma comissão médica com o intuito de verificar a natureza contagiosa ou epidêmica da doença e propor um tratamento adequado. O relatório, concluído em 1829, constata que se tratava, sim, de uma epidemia de malária – não se conhecia ao certo o mecanismo de transmissão – e que, tendo em conta uma série de experiências feitas no local, o remédio mais adequado para debelá-la era o sulfato de quinina.

Eis dois dos casos relatados que subsidiaram a decisão:

“Ana Maria, 25 anos de idade, casada, moradora em Braçanã, há meses acometida de febre intermitente quotidiana, entrou para o Hospital a 29 de janeiro; e não havendo indicação em contrário, aplicou-lhe logo o sulfato de quinina. Achando-se restabelecida, obteve alta no dia 10 de fevereiro”.

Outro que tirou bom proveito do medicamento foi Francisco Antônio Palma, 66 anos, que “entrou a 27 de janeiro com febre intermitente, e achando-se em estado de tomar os tônicos, administrou-se lhe o sulfato de quinina, e deixando de tomar os remédios no dia 3 de fevereiro por ser desnecessário, deu-se lhe alta no dia 6”.

Depois de citarem 17 dos muitos casos estudados, o boticário e os três médicos que compunham a comissão informaram o seguinte: “O tratamento adoptado para debelar a epidemia reinante é fundado nos princípios médicos adquiridos pela observação e prática constantemente sancionada por todos os que têm exercitado a arte de curar, com algum grau de senso comum. Os medicamentos têm sido escolhidos dentre os tônicos. Destes tem ocupado o primeiro lugar os quinados; o sulfato de quinina tem sido de uma preciosa aquisição, produzindo resultados sempre favoráveis […]”.

Os séculos XX e XXI

Depois de isolado o princípio ativo da quina e constatado a sua enorme capacidade terapêutica, o uso do medicamento consolidou-se e as zonas produtoras da árvore Cinchona espalharam-se pelo mundo, sobretudo pela Ásia, ainda que o controle da produção e distribuição da substância tenha se concentrado, crescentemente, nas mãos de ingleses e holandeses.

Em 1934, a cloroquina foi sintetizada por Hans Andersag, nos laboratórios da Bayer, na Alemanha. Todavia, o composto sintético derivado da quinina, mas com uma estrutura química modificada, foi considerado demasiado tóxico e inapropriado para substituir a molécula natural. O grande salto veio na década de 40, dos laboratórios da Winthrop Chemical Company, uma empresa farmacêutica americana.

Os americanos, nas batalhas do Pacífico, durante a II Guerra Mundial, utilizavam largamente das propriedades antimaláricas da quinina, cuja maior parte da matéria-prima, a casca da Cinchona, vinha justamente dos territórios controlados pelo inimigo japonês. Tornou-se, então, imperativo criar um produto sintético e menos tóxico do que a cloroquina para substituir a molécula natural. Daí o desenvolvimento da hidroxicloroquina, um composto com as mesmas propriedades terapêuticas da quinina, mas menos tóxico e mais tolerável para uso prolongado, como em doenças autoimunes.

Entre 1955, quando a Winthrop Chemical Company lançou a hidroxicloroquina no mercado, sob o nome comercial Plaqueril, e 1970, o medicamento reinou soberano no mundo no combate à malária e a outras febres tropicais. A sua reduzida toxidade, mesmo para uso constante, levou a indústria farmacêutica à testá-la e aprová-la para a terapêutica de umas tantas doenças crônicas, entre as quais a artrite reumatoide e o lúpus.

Mais recentemente, em virtude de suas propriedades imunomoduladoras e antivirais, ao menos in vitro, a hidroxicloroquina foi e continua sendo experimentada no enfrentamento de outras patologias, tais como o HIV, a hepatite C, a síndrome antifosfolípide e, embora envolta em polêmicas científicas e, sobretudo, políticas, a COVID-19.

Jean Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Amanda Peruchi é Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

Para saber mais:
António Calancha. Chrónica moralizada del orden de San Agustín en el Perú. Barcelona: Pedro Lacavalleria, 1638. 2 t.

Frei Manoel de Azevedo. Correção dos Abusos. Parte I. Lisboa: Officina de Manoel Lopes Ferreira, 1690.

Frei José Mariano da Conceição Veloso. Quinografia Portuguesa, ou collecção de várias memórias sobre vinte e duas espécies de quinas, tendentes ao seu descobrimento nos vastos domínios do Brasil… Lisboa: Offic. de João Procopio Correa da Silva, 1799.

Jean Marcel Carvalho França; Ana Carolina de Carvalho Viotti (ed.). Coleção de várias receitas e segredos particulares das principais boticas da nossa companhia de Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil [1766]. São Paulo: Editora Loyola, 2019.

Bernardino António Gomes. “Ensaio sobre o Cinchonino, e sobre a sua influência na virtude da quina, e d’outras cascas”. In: Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa, 1812, t. 3, parte 1, p. 201-216.

Amanda Peruchi. “As prescrições de Fernando Mendes para a Água de Inglaterra”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, v. 18, n. 2, 2023, p. 1-10.

John E. Lesch. The First Miracle Drugs. How the Sulfa Drugs Transformed Medicine. New York: Oxford University Press, 2006.

Mark Honisgabaum. The Fever Trail: The Hunt for the Cure for Malaria. New York: Macmillan, 2002.

Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram
Anúncio

Cuiaba - MT / 21 de junho de 2025 - 11:45

LEIA MAIS