Em maio de 2024, o venezuelano Javier Baez Velasquez, 32, teve de abandonar seus projetos de vida após ele e a família terem de ir morar com mais de 200 desconhecidos em um ginásio do Grêmio Náutico União, um dos locais que acolheram mais de 14 mil desabrigados em Porto Alegre durante as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul deixando 184 mortos e um rastro de destruição pelo estado.
A família, que veio de Puerto La Cruz para tentar a vida na capital gaúcha, perdeu todas as conquistas acumuladas em sete anos quando o bairro Sarandi submergiu. “É difícil sair de um país, largar tudo e começar do zero. E eu acho que a gente vai começar do zero de novo”, disse Javier à Folha em 2024.
Um ano depois, o recomeço é mais lento do que o esperado. “Parece que estou caminhando, caminhando, e quando olho para trás, estou no mesmo lugar”, diz.
A empresa onde Javier trabalhava como auxiliar de serviços gerais anunciou no começo do ano que vai fechar as portas. Por isso, ele mandou estampar camisetas com seu nome e contato para divulgar seus serviços de pintura.
A família permaneceu por quase três meses em abrigos em 2024, até conseguir alugar o atual apartamento, também no bairro Sarandi. Javier fez um acordo com o proprietário para pagar um valor reduzido e fazer ele mesmo as reformas para remover as marcas da enchente, que chegou a pouco menos de um palmo do teto do novo imóvel.
Em um ano, conseguiram comprar uma máquina de lavar, armários de cozinha, sofás e cadeiras. “Colchão a gente tem, mas estamos dormindo no chão por enquanto porque não deu para comprar cama. TV, nem pensar. TVs são muito caras.”
O preço dos alimentos no mercado consome o orçamento da família e traz lembranças que eles esperavam ter deixado para trás. “Está virando a Venezuela“, diz Javier, em tom de brincadeira.
Na casa, mora com a mulher Carina, 29, e a filha Berenice, 13, além da cadela Violeta. Carina ainda não conseguiu retomar seu cargo de camareira em um hotel devido a crises de ansiedade e pânico que desenvolveu no último ano. Ela está em tratamento e diz sentir falta de trabalhar.
Histórias de frustração e insegurança em relação ao futuro, como a relatada por Javier, também são compartilhadas por famílias que tiveram suas histórias contadas pela Folha em 2024 e relatam como estão um ano após a tragédia.
Segundo dados do balanço de ações de reconstrução do governo gaúcho, 2.405 habitações foram destruídas pelas enchentes e 6.522 foram interditadas definitivamente
Até este domingo (27), 383 pessoas atingidas pelas cheias ainda moram em abrigos, a maioria concentrada em Canoas (216) e Porto Alegre (139), segundo o governo gaúcho.
Os dois centros humanitários dessas cidades devem ser fechados em junho pelo estado, e as famílias serão encaminhadas para moradias temporárias ou permanentes.
Quem resolveu ficar
Após ter a casa invadida por duas enchentes em um espaço de seis meses —novembro de 2023 e maio de 2024—, Zoraia Câmara havia decidido abandonar São Sebastião do Caí. Um ano depois, segue morando na mesma casa.
“Muitos fatores me fizeram recalcular a rota: mãe idosa que precisa de mim, falta de condições financeiras para pagar por um imóvel do nível do meu, e o principal, o vínculo emocional com o lugar onde nasci”, explica.
As lembranças da destruição continuam dentro de casa, no lustre quebrado, nos quartos sem portas, na garagem que só abre manualmente e na piscina que ficou deformada com a correnteza. Nas ruas, ela vê a cidade que ama, só que “feia, triste e cinza”. “Dia após dia, as coisas insistem em me lembrar que nada mais será como era antes.”
Zoraia ainda sente medo de temporais. Recorda os gritos de socorro e a fuga na enchente, com seu carro balançando na rua alagada, mas tenta abstrair. Já seu marido, chega a passar noites em claro.
“Muitas casas abandonadas e vazias, mato por toda parte…aquela cidadezinha charmosa de interior sumiu. Ficaram apenas aqueles que não podem sair e os que amam demais para partir”, diz. “Não vejo futuro enquanto eu viver, apenas estagnação. Minha expectativa é apenas esperar a próxima enchente chegar.”
Em entrevista à Folha, o governador Eduardo Leite (PSDB) disse que o estado vem implementando ações para mitigar os possíveis impactos de novas cheias, mas afirmou que a formação de sistemas de proteção “robustos” demanda mais tempo.
Segundo ele, o estado já conta com sistemas de monitoramento de alertas mais eficientes, após implantação de novos radares e estações meteorológicas. Além disso, investiu em Defesa Civil, tem promovido desassoreamento de rios e auxiliado municípios a recompor sistemas de proteção, como diques, que foram destruídos nas cheias.
Do outro lado do rio Caí, a aposentada Dirce Keller também optou por não deixar sua casa, que foi coberta até o forro pela água na zona rural de Harmonia. Comprou apenas eletrodomésticos e móveis essenciais, as portas de madeira foram trocadas por alumínio, e o sofá antigo, grande e reclinável, foi substituído por um modelo em módulos. “É bem leve e dá para ser carregado facilmente”, explica.
Nos fundos de casa, ela e o marido construíram um mezanino meio metro acima do nível atingido pela enchente e colocaram prateleiras altas para armazenar louças, roupas e pequenos móveis.
“Construímos a nossa casa pensando que aqui seria o nosso porto seguro para curtir a aposentadoria. Sabíamos que teríamos que encarar algumas enchentes, mas nunca nessas proporções catastróficas”, diz. “Vivemos na vulnerabilidade e incertezas quanto ao futuro que havíamos traçado.”
O medo de que a tragédia se repita também é partilhado pela analista de TI Thaís Deparis. “É impossível não sentir angústia, o medo de que aconteça de novo é latente.”
Ela se prepara para passar o segundo Dia das Mães com a filha Aurora —o primeiro em sua casa nova em São Leopoldo.
No ano passado, ela estava abrigada na casa de parentes, depois que o rio dos Sinos invadiu a casa onde vivia com a mãe. Ela, no entanto, diz ter saído mais da tragédia.
“Passar por essa situação com a Aurora pequenininha foi assustador, mas me fez ter muita coragem. Existem coisas que não há outra saída, a não ser enfrentar, a enchente foi uma delas”.