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Cuiaba - MT / 16 de agosto de 2025 - 18:02

O que sobrou da democracia no Brasil?

O Brasil ainda é uma democracia? A cada decisão autoritária do STF, a pergunta ganha importância. E é cada vez mais difícil dizer que sim.

Em tese, a resposta à indagação é positiva. Os pilares desse modelo de governo estão em pé: a República tem três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), as pessoas podem se candidatar e votar, existem mais de 30 partidos, as eleições ocorrem regularmente, o Congresso está aberto e ainda há alguma liberdade de expressão.

Até mesmo os principais índices internacionais dizem que o Brasil é um país livre – embora não perfeito. A pontuação brasileira no índice da Freedom House é de 72 pontos de 100, dois pontos a mais que a Colômbia e sete a menos que a Argentina.

No Democracy Index, publicado pelo periódico The Economist, a nota do Brasil é 6,49 em uma escala de zero a dez. O país está praticamente empatado com Croácia, Hungria e Argentina. No V-DEM, elaborado por pesquisadores da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, o Brasil tem 0,71 numa escala de 0 a 1, logo acima da Itália.

Na prática, entretanto, a resposta não é tão simples: os pilares democráticos estão seriamente ameaçados no Brasil. Alguns deles, como a liberdade de expressão, ruíram. Outros ainda estão em pé, só que envergados – e a tendência é de piora.

Se o Brasil não é uma ditadura clássica, tampouco é uma democracia plena. Entre os dois extremos, entretanto, existem categorias híbridas, e ainda não está claro qual é a melhor forma de descrever o regime em vigor no país.

Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo não chegaram a um consenso sobre o termo que melhor define o sistema político em vigor. Mas em algo eles concordam: o país vive um momento grave cujo desfecho é incerto.

Juristocracia, censura e democracia

Para Frederico Afonso, advogado e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o Brasil se aproxima cada vez mais de uma “juristocracia”, um regime comandado pelo Judiciário.

O termo foi criado pelo cientista político canadense Ran Hirschl para descrever o tipo de regime político (não governo porque não tem eleição) que nasce do deslocamento de poder da esfera representativa para a judiciária.

Para Afonso, formalmente, o Brasil é uma democracia porque a Constituição de 1988 ainda vigora. No entanto, ele diz que o país vive um momento de “democracia em tensão”, com desequilíbrio entre os Poderes, judicialização excessiva da política e ameaças às liberdades civis.

“Somos uma democracia com traços crescentes de governo tutelado por cortes. Não se pode dizer que vivemos um autoritarismo clássico, mas há características de uma ‘juristocracia’, na qual decisões centrais da vida política e social estão nas mãos de juízes não eleitos”, diz o docente.

Manoel Gonçalves Filho, professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), alertou sobre os perigos da “juristocracia” em um artigo publicado pelo site Consultor Jurídico (Conjur) em abril deste ano: “Não é um sistema (como democracia), mas um regime (como aristocracia ou oligarquia). É o governo de alguns em vista do interesse de alguns. O modo mais frequente não é o povo quem decide em última instância sobre a política a ser executada, mas uma corte de juristas”, afirmou Gonçalves Filho

Ives Gandra: Brasil ainda é uma democracia

Para o jurista Ives Gandra Martins, no entanto, não há dúvidas de que o Brasil continua uma democracia: “Estamos num momento delicado, mas evidentemente que ainda estamos numa democracia. A Constituição continua válida”, disse ele à Gazeta do Povo.

O que acontece, avalia ele, são invasões e abusos em determinadas decisões do STF que adotam uma corrente doutrinária na qual entendem que o poder judiciário tem poder legislativo quando há vácuo do Congresso.

Essa, por exemplo, foi a justificativa da Suprema Corte para decidir sobre o endurecimento das regras de monitoramento das redes sociais. Existem projetos de lei em tramitação no Congresso, mas os ministros do STF acharam que cabia a eles definir o que pode ser publicado.

“Eu entendo que eles não têm este poder. Quando o Legislativo não decide é porque os deputados e senadores, escutando a vontade do povo, percebem que eles não querem que aquela matéria seja legislada. Pura e simplesmente isso”, diz Gandra, também professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU.

Democracia em transição para ditadura?

Para o filósofo Luiz Felipe Pondé, a democracia é um processo contínuo, em andamento e não plenamente consolidado. E o que acontece hoje pode trazer novos rumos: “Somos uma democracia, mas corremos o risco de deixar de ser futuramente”, disse ele à Gazeta do Povo.

Segundo Pondé, o perigo vem não só da censura por parte do Estado, mas também pelo que ele chama de “censura líquida”. “Essa história de que qualquer um pode te processar por se sentir ofendido cria um ambiente em que todo mundo se processa, que não pode falar nada, que não é passível de crítica alguma. Só que o preço de cercear é muito alto. Em nome da democracia e de defender o outro, isso vai reduzindo o escopo da democracia”, analisa.

Na análise do historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, o Brasil caminha para uma ditadura judicial. Autor de mais de 30 livros sobre políticas, governo e economias de vários países, ele acaba de lançar o romance distópico 2075, que descreve como uma democracia gradualmente se transforma em uma ditadura.

“Vejo esse perigo muito real. Se esse desenvolvimento não puder ser interrompido, caminharemos cada vez mais em direção a uma ditadura (no Brasil)”, afirmou Zitelmann à Gazeta do Povo.

O sociólogo diz lamentar que outros países não percebam a “ameaça perigosa” que acontece no Brasil. “Se o Supremo Tribunal Federal e o presidente não fossem de esquerda, mas de direita — haveria um clamor global”, afirma.

Para ele, o cenário brasileiro está ligado à força da esquerda – ou melhor, sua fraqueza.

“No passado, a esquerda conseguia manter seu domínio por meio da chamada cultura woke e do cancelamento, difamando qualquer pessoa que não fosse de esquerda como nazista ou fascista. Isso não funciona mais. É por isso que agora estão migrando da cultura do cancelamento para a repressão aberta”, diz Zitelmann.

Em março de 2023, o presidente Lula participa de solenidade do TSE, onde o ministro Alexandre de Moraes concedeu a comenda da Ordem do Mérito do TSE ao presidente do então Senado Federal, Rodrigo Pacheco. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

STF passou a legislar e violou separação dos poderes

A sétima linha da Constituição de 1988 estabelece: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Ou seja, quem manda (ou deveria) é o povo, por meio do voto que elege representantes do Executivo e do Legislativo. O Judiciário não entra nessa equação. Ninguém foi escolhido pelos brasileiros para sentar em uma das 11 cadeiras do STF. Os ministros são indicações do presidente.

Na teoria, o Congresso cria as leis; o Judiciário garante o cumprimento e o Executivo, cumpre – o óbvio ululante, como diria o escritor Nelson Rodrigues. Mas, em tempos densos, o evidente precisa ser lembrado.

Mas o STF se politizou. Nos últimos 15 anos, mas sobretudo desde 2019, o Judiciário tem expandido sua atuação e viés político, principalmente o ministro Alexandre de Moraes. Isso ficou mais visível em 2020, quando o ministro suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal.

Na pandemia, Moraes barrou medidas de Bolsonaro e desde então está à frente de investigações que envolvem o ex-presidente e sua família. A defesa dele já tentou retirar Moraes da relatoria, alegando parcialidade, mas o STF formou maioria para mantê-lo.

Os 11 integrantes da Suprema Corte se tornaram figuras conhecidas. Alguns até participam de festas como celebridades, passaram a investir no monitoramento da sua presença nas redes sociais e tomaram o papel de protagonistas dos grandes debates do país.

Entre elas, a criação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a liberação de drogas para uso próprio e a criminalização da “homofobia” e da “transfobia”. Em junho deste ano, Alexandre de Moraes também liberou o aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), mesmo após o Congresso Nacional derrubar o decreto presidencial, alegando abuso de poder de tributar.

Ao invadir as competências do Legislativo e do Executivo, o STF criou um desequilíbrio entre os poderes. “A separação dos poderes atribui ao Judiciário e a seu supremo tribunal a função de assegurar o respeito à Constituição. Não a de governar, que cabe, numa democracia, aos eleitos pelo povo”, escreve Gonçalves Filho.

Na prática, juízes não eleitos tomam as decisões mais importantes da vida política e social, o que poderia enfraquecer a soberania popular e, consequentemente, a própria democracia.

“A democracia existe, mas com funcionamento comprometido pela concentração de poder decisório no Judiciário (no STF), fenômeno que, embora amparado por demandas da sociedade, escapa à lógica do sistema de freios e contrapesos”, diz Afonso.

Onde estão o Congresso e o governo?

A História mostra que ninguém chega nem se mantém no poder sozinho. Alexandre de Moraes é a figura central deste modelo que reduz a liberdade e aumenta a arbitrariedade. Entretanto, o colegiado vem referendando suas decisões. Somado a isso, o STF tem apoio do governo e do Senado – o único que poderia tirá-lo da corte.

Os ministros André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux são os únicos que têm votado de forma contrária a Moraes em parte das decisões do STF. Os demais vêm sustentando as posições do colega na maioria dos casos.

O caldo, porém, entornou nesta semana após Moraes decretar a prisão domiciliar de Bolsonaro. O grupo se irritou e o isolou ao considerar a decisão exagerada, desnecessária e insustentável do ponto de vista jurídico, segundo a colunista Mônica Bergamo da Folha de São Paulo.

O STF também se respalda no governo petista. Lula já afirmou “se não for ao STF, não governa”, sobre a decisão do IOF. Sua esposa, Janja da Silva, chamou Moraes de “grande parceiro”. Na semana passada, quando os EUA o sancionaram com base na Lei Magnitsky, Lula convocou uma reunião como gesto de apoio ao magistrado.

Mas e o Senado? O cargo de ministro pode ser deixado por renúncia, aposentadoria, morte ou impeachment, que precisa da aprovação dos senadores.

O impeachment de um ministro do STF é semelhante ao de um presidente da República, mas com uma diferença de ser conduzido pelo Senado Federal. O pedido é analisado pelo presidente do Senado – hoje, Davi Alcolumbre (União-AP) – que decidirá se tem procedência ou será arquivada.

Para que o ministro seja afastado, são necessários os votos de dois terços dos senadores (54 dos 81). Por enquanto, a oposição não conseguiu arregimentar nem os 41 parlamentares necessários para a abertura do processo.

“O STF está se contaminando, está muito exposto e com muito poder concentrado. Quando Barroso diz ‘derrotamos o bolsonarismo’ mostra a contaminação ideológica”, diz Pondé.

Manifestação em 3 de agosto, em Goiânia (Foto: Guilherme Honorato/Divulgação PL)

Liberdade de expressão: perigo aos poucos

A liberdade de expressão também é frequentemente mencionada como um dos pilares da democracia em ameaça. Diferentemente da ditadura militar, quando foi baixado um decreto com várias proibições de publicações em jornais, teatros e letras de músicas, a censura hoje vem pelas beiradas.

Zitelmann diz que ouviu sobre as ameaças de censura à liberdade de expressão no Brasil pela primeira vez quando foi convidado para dar uma palestra em São Paulo, e 2022. O que lhe chamou a atenção, conta, foi quem era o censor:

“No Brasil, a ameaça vem do Supremo Tribunal Federal, que tem repetidamente condenado pessoas por fazerem certas declarações, às vezes até sentenciando-as a vários meses de prisão”, diz o sociólogo alemão.

“A mudança começa aparentemente inofensiva com coisas como as discutidas em 2022, mas quando você começa a restringir a liberdade de expressão, as coisas aceleram cada vez mais — até acabar em uma ditadura, a menos que ela possa ser interrompida”, alerta ele.

“Censura líquida”

Zitelmann e Pondé acrescentam que uma das consequências do ambiente atual é o surgimento da “censura líquida”, que começa com a concentração de poder nas mãos de poucos juízes e se propaga pela sociedade.

“A crítica ao presidente, por mais trivial que pareça, é um termômetro importante da saúde democrática. No entanto, o perigo maior não vem só do Estado, mas também da própria sociedade, onde a facilidade de processar por ‘se sentir ofendido’ cria um clima de autocensura e restringe cada vez mais a liberdade de expressão”, analisa Pondé.

Zitelmann, que já estudou o regime de governo de dezenas de países, alerta que a censura começa com a condenação a discursos extremos. Mas depois as restrições vão aumentando e a liberdade de expressão fica cada vez mais sufocada.

“O país é uma democracia hoje, mas corre o risco de deixar de ser no futuro, e o caminho para evitar isso é aprender a lidar com as ofensas em vez de censurá-las”, ele diz.

Por que nos índices globais o Brasil vai bem?

Organizações como a Freedom House, o V-Dem Institute e a The Economist (que publica o Democracy Index) classificam o Brasil como uma democracia funcional. A aparente contradição entre a percepção de deterioração interna e as avaliações globais se deve, em grande parte, aos métodos de avaliação.

Esses índices geralmente dão mais peso a indicadores formais, como a existência de eleições, a alternância de poder e a ausência de censura prévia pelo Executivo. Eles avaliam sobretudo o autoritarismo do Executivo, e podem ter dificuldade em captar as nuances do ativismo judicial.

A Freedom House, por exemplo, destaca que o Brasil tem eleições bastante competitivas e enfrenta desafios como violência, alto grau de corrupção e ameaça a ativistas e jornalistas. Cita, ainda que em 2024 o ministro Alexandre de Moraes bloqueou a rede X depois de Elon Musk descumprir uma ordem judicial, e que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi indiciado por supostamente orquestrar um golpe.

Já o V-DEM atribui a Bolsonaro a tentativa de romper essa sedimentação da democracia e a Lula a consolidação dela. “A autocratização foi interrompida e revertida quando o candidato da oposição Luiz Inácio Lula da Silva derrotou Bolsonaro nas urnas em 2022. A democracia se recuperou, mesmo que não totalmente aos níveis anteriores”, diz o relatório mais recente da organização, divulgado no ano passado.

O professor Frederico Afonso argumenta que “os índices não estão necessariamente errados, mas são limitados. “As violações a direitos e garantias pelo STF acabam maculando todo o Judiciário mas tendem a passar ilesas por esses indicadores, o que é um contrassenso.”

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