Reza a lenda e aquela coisa falha que chamo de memória que Guimarães Rosa aconselhou Fernando Sabino a abandonar as crônicas que o mineiro escrevia lá naquele estilo maravilhosamente simples dele e passasse a construir pirâmides. Essa história é algo que sempre gera reações que variam entre o bocejo e o ressentimento contido, até que invariavelmente aparece alguém para propor a salomônica pirâmide de biscoitos. E rimos todos e vamos para casa esmurrar o cinzel na pedreira ou sovar bem a massa amanteigada.
Nos últimos dias tenho preparado muitos biscoitos enquanto a pirâmide nova não fica pronta e, na condição de padeiro (ou seria confeiteiro?), me assusta perceber a incapacidade das pessoas em reconhecerem os sabores mais elaborados do produto. E não me venha com invenções, brincadeirinhas ou (pecado dos pecados!) essas tais imaginação e criatividade! O cliente mal consegue apreciar biscoito de água e sal. O que tem a ver com a rejeição à vocação para a excelência, substituída pela cômoda sujeição à mediocridade. Ainda mais quando ela é rentável.
Nostalgia
Saindo da metáfora, para o bem do que me resta de sanidade, vale dizer que fujo da nostalgia como o brasileiro médio foge de um livro. Essa coisa de dizer que antigamente tudo era melhor, as pessoas eram mais inteligentes, menos vulgares, mais interessadas e interessantes é uma tentação, reconheço, mas uma tentação tóxica, cancerígena. E sobretudo mentirosa. Nada de bom jamais germinou da nostalgia, porque a nostalgia geralmente é um autoengano.
O que não quer dizer que não se possa constatar a decadência e, antes de se desesperar, constatar também as implicações dela no presente e no futuro. No caso específico das pirâmides e dos biscoitos, isto é, da arte que almeja a eternidade e da arte que almeja causar um impacto rápido e efêmero, um sustinho, um soco no estômago ou uma risadinha, o problema é que as pessoas se tornaram completamente incapazes de saborear um biscoito. E a história é muito clara: pessoas incapazes de saborear biscoitos, ou porque optaram pela alienação ou porque são analfabetas funcionais, ignoram completamente as pirâmides. Até que acabam por demoli-las.
Tragédia sem fim
Não pretendo, aqui, entrar nos porquês de o analfabetismo funcional ter alcançado essa dimensão epidêmica. Tenho minhas teorias, mas, a não ser que alguém disponha de uma máquina do tempo para que eu possa confirmá-las e corrigi-las, elas são inúteis. O fato é que é preciso, de alguma forma, tirar o popô avantajado da poltrona e resgatar os consumidores de biscoitos. É preciso ensiná-los a passar a massa por toda a língua, aqui sentindo o doce, ali o salgadinho, acolá o azedo e o amargo, o picante (ui!) e o que mais houver para sentir nas guloseimas.
Sei que este texto parece uma platitude e uma exortação ao nada, mas neste momento pare e pense: poucas pessoas das que começaram a ler este texto tiveram paciência ou interesse para chegar até aqui e menos ainda serão as capazes de entender o que é uma platitude e uma exortação ao nada. O que já é uma tragédia. Mas piora, porque uma parcela ainda é menor compreende completamente a metáfora dos biscoitos e das pirâmides e, destes, são minoria os que já ouviram falar de Guimarães Rosa e Fernando Sabino. Para piorar um tiquinho mais, como se piorar fosse possível, minoria da minoria é quem um dia se deparou com uma pirâmide (ainda por cima metafórica!) e minoria da minoria da minoria quem a admirou.
Monte de nada
O que, aliás, me leva (ou seria “traz”?) à constatação de algo que talvez não tenha escapado à analogia roseana: quão inútil deve ser uma pirâmide para quem vive à base desses biscoitos insossos, recheados de obviedades e vendidos em chamativas embalagens de indignação estéril. Para essas pessoas, uma pirâmide não passa de um cenário distante. Ou melhor, de um imponente monte de nada.
E até aí, tudo bem, como diria o otimista incorrigível. O problema é quando as pessoas deixam de se alimentar até de biscoitos. O que já está acontecendo… O problema é quando as pessoas preferem morrer de fome a escalar a pirâmide de biscoitos a fim de refletir mais sobre justamente isso. E também aquilo.