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Cuiaba - MT / 23 de junho de 2025 - 17:35

Geopolítica da covardia: “equilíbrio” brasileiro legitima a irresponsabilidade nuclear

No intrincado xadrez geopolítico internacional, onde cada gesto diplomático é escrutinado sob uma lente estratégica, o Brasil tem, historicamente, buscado posição de equilíbrio e não alinhamento. No entanto, há momentos em que a busca por tal “equilíbrio” beira a covardia, transformando-se de virtude em vício.

A recente nota do Itamaraty, condenando os ataques a instalações nucleares iranianas, realizados por Estados Unidos e Israel, não é um mero deslize protocolar; é um marco de diplomacia equivocada, enviesada e prejudicial, uma profunda manifestação de pusilanimidade mascarada sob o manto de uma autoproclamada e mal-aplicada “tradição histórica de equilíbrio”.

Essa postura, longe de elevar a estatura exterior do Brasil, alinha-o inadvertidamente a forças que desestabilizam a ordem internacional e minam os pilares da não proliferação nuclear, acarretando riscos políticos e diplomáticos profundos que ameaçam erodir por completo sua já esquálidas credibilidade e influência no cenário global.

A desconstrução da nota oficial brasileira: uma análise crítica

A leitura atenta do aparentemente insípido e insosso comunicado oficial do Itamaraty revela uma preocupante superficialidade e uma assustadora ausência de contextualização vital.

A condenação dos ataques surge em um vácuo geopolítico, sem qualquer menção ou ponderação sobre o histórico de negociações abandonadas por Teerã, seu enriquecimento ilegal de urânio muito além dos limites permitidos, e as repetidas violações dos compromissos internacionais assumidos sob o Tratado de Não Proliferação (TNP) e com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

A ausência de qualquer crítica às ações iranianas anteriores – que, inegavelmente, pavimentaram o caminho para a atual escalada – transforma a condenação brasileira dos ataques em uma anomalia unilateral, que ignora por completo a cadeia causal dos eventos.

Este comunicado é, na sua essência, uma “salada geopolítica”, um amálgama de retórica vaga que mistura situações radicalmente distintas e confunde intencionalmente a equivalência moral.

Ao equiparar as ações de um Estado (Irã) que historicamente desafia o regime de não proliferação nuclear com as ações de outros Estados (EUA/Israel) que buscam conter essa ameaça, o Brasil endossa implicitamente ou, no mínimo, oferece uma complacência perigosa a violações do direito internacional e do TNP por parte do Irã.

A omissão, neste caso, não é neutralidade; é uma forma silenciosa, mas eloquente, de conivência.

Adicionalmente, a alegação de “transgressão da Carta das Nações Unidas” surge como um argumento isolado e descontextualizado. Para ser minimamente coerente, tal acusação exigiria a contextualização do histórico do programa nuclear iraniano e suas violações sistemáticas das resoluções do Conselho de Segurança da ONU e das salvaguardas da AIEA.

A Carta da ONU não existe num vácuo, isolada das ações unilaterais e irresponsáveis de Teerã que, por anos, têm testado a paciência da comunidade internacional e ameaçado a paz regional e global.

A covardia do “equilíbrio”: desvendando uma falácia

A dissonância entre a posição histórica do Brasil em favor do uso exclusivo da energia nuclear para fins pacíficos e a rejeição à proliferação nuclear e a evidente não condenação explícita das ações iranianas que comprometem esses mesmos princípios é uma contradição fundacional que mina a autoridade moral da política externa brasileira.

A coerência exige que a diplomacia condene não apenas as ações reativas, se for o caso, mas, primeiramente, as ações iniciais que provocaram a instabilidade.

A suposta “tradição de equilíbrio” diplomático do Brasil, neste contexto crítico, transfigura-se numa inação moral e estratégica. Essa neutralidade equivocada, ou pior, essa indiferença calculada, resulta em um alinhamento imprudente com agendas que comprometem a estabilidade global e os princípios fundamentais da não proliferação.

Quando o Brasil escolhe “lavar as mãos” diante da desfaçatez nuclear iraniana, ele não se torna um mediador imparcial; ele, de forma implícita e perigosa, legitima o desrespeito ao direito internacional.

É imperativo ressaltar que tradições e práticas diplomáticas, por mais veneráveis que sejam, inclusive o tão alardeado “equilíbrio”, só fazem sentido e mantêm sua legitimidade quando são manifestamente convergentes com o interesse nacional mais amplo.

Elas precisam estar alicerçadas em diretrizes de política externa que estejam alinhadas a uma grande estratégia de nação e a princípios morais avaliados sob a luz do interesse nacional e da realpolitik internacional.

A adesão cega a uma “tradição” que, em um momento de crise, se traduz em aquiescência a violações da ordem internacional, trai o próprio conceito de uma diplomacia estratégica e, em última instância, prejudica toda a nação. O “equilíbrio” sem propósito ou discernimento não é virtude, é abstenção irresponsável.

A nota demonstra uma incapacidade de distinguir entre agressores e defensores da segurança internacional ou, de forma mais preocupante, uma escolha deliberada por uma posição moralmente ambígua que serve a interesses de fachada, mas que tem um custo real e mensurável para a influência e credibilidade do país.

Riscos políticos e consequências diplomáticas para o Brasil

Essa postura equivocada tem um impacto direto na credibilidade do Brasil como ator responsável no cenário internacional e, de forma mais crucial, como um defensor da não proliferação nuclear. Quem, de fato, confiará na mediação brasileira se ela se recusa a condenar as violações mais flagrantes dos acordos de não proliferação?

Há um grave risco de se acentuarem o isolamento nacional e a desconfiança por parte de potências democráticas e parceiros estratégicos – especialmente aqueles que se alinham intransigentemente à não proliferação e à segurança global – que podem ver a postura brasileira como ingênua ou, no limite, cúmplice.

As implicações de reputação de ser percebido como condescendente com regimes que ameaçam a segurança e estabilidade globais são incalculáveis. Tal percepção pode levar a uma marginalização progressiva em fóruns cruciais de segurança global, onde o Brasil poderia, e deveria, exercer um papel construtivo.

Sob Lula 3, repercussões negativas dessa natureza têm se estendido à política externa brasileira como um todo, minando sua capacidade de mediação em conflitos complexos e sua aspiração legítima a um papel de liderança global. Uma diplomacia que escolhe mal seus momentos de “equilíbrio” inevitavelmente perde sua bússola e, com ela, sua relevância.

Um chamado à coerência e coragem

A nota em questão é um monumento à miopia estratégica, uma das mensagens mais infames e embaraçosas da diplomacia brasileira recente, representando um desvio perigoso e inaceitável de seus princípios fundadores de responsabilidade global, desvio esse que tem se tornado regra na gestão dos chanceleres Mauro Vieira (de enfeite) e Celso Amorim (de fato). A perigosa mistura de covardia e omissão diplomática não é uma fórmula para a liderança, mas sim para o descrédito e a irrelevância em questões críticas que definem a paz e a segurança internacionais.

É impostergável, pois, um chamado urgente não apenas à reflexão, mas à reorientação. O Brasil deve transcender a mera retórica de equidistância e abraçar a responsabilidade que seu peso específico e suas aspirações demandam, forjando uma política externa mais coerente, corajosa e alinhada com os valores democráticos e a segurança global.

A neutralidade, quando a não proliferação nuclear está em risco, não é uma virtude; é uma cumplicidade silenciosa que legitima a irresponsabilidade, aliena parcerias históricas e nos coloca no lado errado da história.

Em um governo minimamente sério, ainda haveria tempo de o Brasil rejeitar essa abordagem insciente e perigosa, e em seu lugar, adotar uma diplomacia que ancore suas práticas e tradições em um entendimento profundo do interesse nacional e da realpolitik internacional.

Não é o caso atual em nosso país, infelizmente.

A verdadeira liderança e influência emergem não da ambiguidade calculada, mas da clareza moral e estratégica que se alinha aos imperativos de um mundo em ebulição. Essas são qualidades absolutamente em falta nos atuais formuladores da política externa pátria, ao que parece.

Em um mundo onde a paz global pende por um fio e a comunidade internacional clama por lideranças lúcidas e determinação inabalável, a diplomacia brasileira não pode se dar ao luxo de ser apenas ‘equilibrada’; ela precisa ser corajosa, justa, intelectualmente honesta e coerente.

Do contrário, a “tradição” brasileira será lembrada não como estratégia diplomática, mas como o epitáfio das próprias ambições nacionais, cicatriz dolorosa de mais uma oportunidade perdida por hesitação e ambiguidade, relegando o país à periferia moral e estratégica do tecido político global e ao rodapé da história.

Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa 

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Cuiaba - MT / 23 de junho de 2025 - 17:35

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