No último dia 17 de maio, o Papa Leão XIV proferiu um discurso dirigido à Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice — organização ligada ao Vaticano que promove o estudo e a difusão da Doutrina Social Católica (DSC) [conjunto de ensinamentos da Igreja sobre questões sociais, econômicas e políticas à luz do Evangelho].
Foi um gesto significativo para o início de seu pontificado, já que ele explicou que a escolha de seu nome papal reflete a prioridade que pretende dar ao uso do patrimônio da DSC para enfrentar desafios contemporâneos, como os desdobramentos de uma segunda revolução industrial e os avanços da inteligência artificial.
Leão XIV enfatizou que a Doutrina Social Católica não deve ser confundida com doutrinação: trata-se de um corpo de ensinamentos marcado por seriedade, rigor e serenidade.
Com isso, ele ofereceu uma oportunidade para esclarecer duas distinções cruciais: entre a DSC e o Depósito da Fé — conjunto de verdades reveladas pela Igreja — e dentro da própria DSC, entre seus princípios universais e as aplicações prudenciais que eles inspiram.
Quando essas distinções se embaralham, cresce a tentação de instrumentalizar a doutrina como plataforma ideológica ou ferramenta de combate político sob o verniz da piedade.
Marco inagural
Desde a publicação da encíclica Rerum Novarum, em 1891, por Leão XIII — documento considerado o marco inaugural da Doutrina Social da Igreja —, já se passaram 134 anos. Desde então, o corpo de ensinamentos da DSC cresceu consideravelmente, a ponto de exigir, hoje, uma leitura especializada com comentários e referências cruzadas.
Seu status doutrinário, contudo, muitas vezes permanece mal compreendido, e boa parte dos fiéis ignora o caráter parcialmente circunstancial com que se originou. A Rerum Novarum (do latim, “Das novidades”) foi uma resposta direta às transformações sociais da Revolução Industrial, buscando aplicar princípios permanentes da fé cristã a um contexto histórico concreto.
Essa origem implica que o documento representa uma aplicação prudencial de princípios imutáveis a problemas específicos de seu tempo.
Desde então, muitos documentos magisteriais não distinguiram com clareza ensinamentos morais permanentes da Igreja — como o direito a um salário justo ou a opção preferencial pelos pobres — e juízos contingentes, que pertencem ao campo da política e da economia, nos quais a Igreja reconhece a autonomia e o discernimento dos leigos.
Construção sistemática
Avaliações sobre o valor exato de um salário justo na Califórnia em 2025 ou a superioridade de determinado modelo econômico, por exemplo, escapam à autoridade direta da Igreja e pertencem ao âmbito da prudência laica. As palavras do Papa Leão devem ser lidas à luz dessa distinção.
“Doutrina”, ele explicou, “pode ser sinônimo de ciência, disciplina e conhecimento”. Compreendida assim, a doutrina não é imposição dogmática, mas o fruto de pesquisa, reflexão, debate e construção sistemática.
Nesse sentido, Leão XIV parece ecoar a “Instrução Sobre Liberdade Cristã e Libertação”, publicada em 1986 pela Congregação para a Doutrina da Fé, então sob a liderança do cardeal Joseph Ratzinger (futuro Bento XVI), que afirmava: “Esta doutrina se consolidou utilizando os recursos da sabedoria humana e das ciências”.
A Doutrina Social Católica, portanto, não é um catecismo de regras sociais rígidas nem uma agenda política pronta a ser imposta. É um esforço contínuo para compreender a realidade humana e social à luz do Evangelho.
“Doutrinação”, alertou o Papa, “é imoral. Ela sufoca o juízo crítico e viola a sagrada liberdade da consciência — mesmo quando esta erra”.
Leão XIV apresenta, assim, uma visão da DSC como sendo transpolítica — ou seja, capaz de dialogar com a esfera pública e política sem se deixar reduzir a ela.
Bússola moral
Entre os intérpretes contemporâneos mais relevantes da Doutrina Social da Igreja, o teólogo norte-americano J. Brian Benestad propõe uma estrutura robusta para compreender o espírito retomado por Leão XIV.
Em sua obra Church, State and Society: An Introduction to Catholic Social Doctrine [“Igreja, Estado e Sociedade: Uma Introdução à Doutrina Social Católica”], Benestad destaca que a DSC nasce do encontro entre a mensagem do Evangelho — centrada no amor a Deus e ao próximo — e os dilemas que emergem da vida em sociedade.
A Doutrina Social Católica, assim, oferece uma bússola moral para discernir o que a justiça e a caridade exigem em situações variadas da vida. Trata-se de um modo disciplinado de raciocínio moral, que une fé e razão e busca o bem comum, servindo como ponte entre princípios perenes e realidades históricas em constante transformação.
Ainda segundo a “Instrução Sobre Liberdade Cristã e Libertação”, esse ensinamento “é essencialmente orientado para a ação”, e por isso “desenvolve-se segundo as circunstâncias mutáveis da História”, mantendo-se “aberto às novas questões que continuamente surgem”.
O caráter da pessoa que faz juízos prudenciais é decisivo nesse processo, motivo pelo qual a conversão interior é, para Benestad, condição indispensável ao discernimento moral autêntico.
Os princípios permanentes do catolicismo — como a condenação do assassinato de inocentes ou a definição do matrimônio como união entre homem e mulher — têm valor universal. Não são construções culturais nem fórmulas sociológicas: são verdades reveladas, enraizadas na Lei Natural e reconhecidas pela Igreja.
Transpolítica, não apolítica
Por outro lado, a aplicação desses princípios requer prudência. Durante a Guerra Fria, por exemplo, católicos poderiam divergir legitimamente sobre se a corrida armamentista dos Estados Unidos ou o desarmamento promoviam melhor a causa da paz.
A política é inevitável na vida humana, mas a missão da Igreja não se resume a ela: é transpolítica, não apolítica — uma diferença vital.
Essa distinção permite à Igreja dirigir-se ao mundo político sem ser dele prisioneira. Quando afirma a dignidade do trabalhador, por exemplo, ela orienta a consciência dos agentes públicos e privados sem precisar ditar uma política trabalhista específica.
A missão da Igreja é mais profunda: ela busca iluminar a ordem temporal com a verdade do Evangelho, sem se confundir com ideologias ou interesses partidários.
É por isso que o Papa Leão XIV insiste que o mais importante não é a resposta pronta, mas a formação da consciência e o discernimento contínuo, iluminado pela graça e pela liberdade. “Saber como abordar melhor as questões sociais é mais importante do que fornecer respostas imediatas”, afirmou em seu discurso.
A missão da Igreja é formar pessoas capazes de enfrentar os problemas do mundo a partir de uma base sólida: o Evangelho, os sacramentos e a doutrina.
Tradição moral
A Igreja não oferece soluções técnicas ou modelos de governo, mas uma tradição moral confiável, enraizada na visão da pessoa humana como imagem de Deus, criada para a comunhão.
Os princípios da DSC são estáveis porque transcendem as modas e conjunturas. Por isso mesmo, são ferramentas preciosas para refletir sobre como viver com justiça no presente.
Mas a aplicação desses princípios não pode ser mecânica. Exige prudência e sensibilidade histórica.
Leão XIV, ao destacar a importância do discernimento, alerta contra o impulso reducionista de ver em cada fenômeno social um “sinal dos tempos” com significado revelado. Isso seria transformar análise em profecia, e política em teologia — um erro perigoso.
Fé e razão
Na parte final de seu discurso, Leão XIV retomou uma expressão central do Concílio Vaticano II: “ler os sinais dos tempos à luz do Evangelho”. Mas, como ensinam os Evangelhos, essa leitura não é automática.
Em Mateus 16:3, Jesus critica os fariseus por saberem “interpretar o céu” mas não os sinais da vinda do Messias. Os “sinais” verdadeiros apontam para Cristo, não para estatísticas ou modismos. A história não é reveladora por si só; sua inteligibilidade está em Deus e só será plenamente revelada no fim dos tempos.
Por isso, a Igreja não pode se comportar como analista ou comentarista político. Ela é, antes, um sinal sacramental — um testemunho da transcendência no interior do tempo.
Seu papel não é prever tendências, mas proclamar Cristo crucificado e ressuscitado, e formar consciências que atuem no mundo com justiça, caridade e fé. A Doutrina Social Católica, como disse o Papa, “não é uma ideologia nem um conjunto de slogans, mas uma forma de ver a realidade iluminada pela fé e pela razão”.
Discernimento paciente
Essa ênfase no discernimento paciente — “saber como melhor abordar os problemas sociais é mais importante do que fornecer respostas imediatas” — reflete uma sabedoria que resiste tanto à pressa das redes quanto às narrativas utilitárias do presente. Prudência cristã não se deixa arrastar pela última pesquisa ou crise política, e tampouco transforma o clamor do momento em dogma.
Em última análise, a missão da Igreja é evangelizar, santificar e conduzir à salvação. Envolver-se nos detalhes da disputa partidária costuma comprometer essa missão.
Há, evidentemente, exceções: em casos como aborto ou escravidão, não existe neutralidade possível. Mas em temas mais complexos, como políticas ambientais ou modelos de combate à pobreza, o envolvimento excessivo pode prejudicar a credibilidade e a eficácia do testemunho cristão.
O discurso do Papa Leão XIV indica que ele compreende bem o que está em jogo.
©2025 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês: Doctrine, Not Indoctrination: Pope Leo XIV and the Transpolitical Nature of Catholic Social Doctrine