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Cuiaba - MT / 23 de junho de 2025 - 3:12

Derrama: quando os brasileiros se revoltaram com imposto da coroa portuguesa 

Quando o governo não arrecada tanto quanto gostaria e decide exigir mais impostos da população, o desfecho pode ser turbulento. 

É possível que o governo Lula não saiba, mas o Brasil tem um precedente histórico nesse quesito: a derrama, instituída pela Coroa de Portugal no século XVIII, no auge da exploração do ouro. 

A época deixou duas lições que podem ser úteis à gestão atual, que tem buscado aumentar tributos para acompanhar um crescimento nas despesas do governo. 

A primeira: quando as contas não fecham, é mais adequado reduzir as despesas que aumentar os impostos. 

A segunda: cobrar os bons pagadores por causa dos maus pagadores é uma estratégia arriscada. 

Origem da derrama 

A derrama foi instituída em 1750, por meio da Lei Novíssima das Casas de Fundição. A criação das casas de fundição permitia a Portugal cobrar impostos sobre a quantidade de ouro extraída, e não sobre o número de escravos utilizados (como acontecia até então). 

A coroa já cobrava 20% (o quinto) do ouro extraído na colônia, que precisava necessariamente passar pelas casas de fundição oficiais. Mas a fiscalização era difícil. O descaminho e o contrabando de ouro eram comuns.  

Por isso, a lei também autorizava a coroa a fazer a derrama. 

Nesse sistema, o governo instituiu uma cota anual (de 100 arrobas de ouro) que Minas Gerais deveria produzir em tributos. Quando essa meta não era atingida, o déficit anual era repartido igualmente entre as quatro comarcas das Minas Gerais.  

O sistema da derrama acabava funcionando como uma taxação dupla sobre os bons pagadores. Além disso, com a derrama, a cobrança deixava de ser feita apenas aos mineradores e se estendia a toda a sociedade. A arrecadação podia ser feita de diversas formas: sobre o comércio, escravos ou transporte de bens, por exemplo. Cada comarca precisava se encarregar de cumprir a sua parte da derrama.  

Pressão social como arma contra sonegação 

Ao instituir a derrama, a coroa portuguesa pretendia aumentar a pressão social e a fiscalização sobre a extração de ouro. 

Em 1775, em uma carta ao governador Antônio de Noronha, o Marquês de Pombal explicou a lógica: “Na inteligência de que a mesma derrama não somente foi estabelecida para, realmente, se perfazer a referida conta, mas também para que todos os moradores do Distrito dessa capitania servissem de Fiscais dos mesmos contrabandos; pois, sendo compreendidos geralmente todos na Derrama, os roubos que uns fazem redundam em prejuízo dos outros que os não fizerem.” 

Apesar de a lei que criou a derrama ser de 1750, a norma só foi aplicada pela primeira vez em 1763. A coroa cobrou 17 arrobas de ouro (o déficit acumulado nos 13 anos anteriores). A segunda, em 1769. 

A aplicação da norma exigia tato. O rei Dom José I reconhecia isso. Em uma mensagem ao governador da capitania, o Conde de Valadares, o monarca escreveu: “Essas derramas são de consequência assaz forte, e por este motivo confia Sua Majestade que Vossa Excelência não só auxilie quanto couber no possível os mineiros, tratando-os com toda urbanidade e amor”. A carta foi enviada em 1767. 

“A derrama nos seus primeiros momentos não foi utilizada a ferro e fogo. De acordo com o historiador Joaquim Romero de Magalhães, do lado metropolitano também havia um temor em se pesar muito a mão sobre os seus súditos mineiros”, afirma Cláudia Maria das Graças Chaves, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e estudiosa do Brasil Colônia.  

Ela explica que os portugueses temiam que, pressionados, os colonos brasileiros facilitassem a expansão dos espanhóis pelo território brasileiro. Naquele período, as fronteiras do Brasil ainda não estavam consolidadas e o reino espanhol tinha ambições territoriais sobre parte da área sob domínio português. 

Eficácia fiscal 

Do ponto de vista da coroa, a derrama até que funcionou em princípio.  

A professora Cláudia Maria das Graças Chaves diz que o método teve resultado — pelo menos do ponto de vista contábil. “A derrama atuou para conter a sonegação com alguma efetividade”, ela diz.  

A professora lembra que, além do aspecto econômico, a política tributária do Império contemplava temas religiosos. “A teologia moral escolástica lembrava aos súditos seus deveres com o soberano, justificando e reforçando a importância da contribuição e manutenção dos tributos necessários para a manutenção do rei, assim como a extração de toda a riqueza proveniente daqueles territórios derivava da magnanimidade real que permitia aos seus súditos explorarem em nome da Coroa”. 

A professora Adriana Romeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais, afirma que as derramas eram inicialmente raras. Entre o ato de 1750 e a primeira derrama, houve um intervalo de 13 anos. “A eficácia da derrama tinha mais a ver com a sua possibilidade de acontecer do que com a sua ocorrência efetiva. Tratava-se de uma ameaça que aterrorizava a população”, explica a historiadora. 

Ligação com a Inconfidência 

Se é verdade que a derrama ajudou a reduzir a sonegação e o contrabando de ouro, também é verdade que o sistema teve repercussões políticas. Com o tempo, a política da cautela foi sendo deixada de lado, e a cobrança da derrama passou a ser aplicada de forma mais ostensiva. 

Como o ciclo do ouro estava em declínio, as demandas inflexíveis de Lisboa soavam ainda mais afrontosas. 

Seria um exagero dizer que a derrama foi a causa da Inconfidência Mineira, que eclodiu na década de 1780. Mas ela foi um elemento-chave na revolta. Comerciantes, fazendeiros e profissionais liberais se viam injustiçados por um modelo de arrecadação que colocava sobre eles a responsabilidade de cobrir o déficit da coroa e pagar pelos sonegadores do tributo do ouro. 

Entre os que se revoltaram, está Joaquim José da Silva Xavier: o Tiradentes. 

O ano era 1788. Depois de as Minas Gerais terem falhado em cumprir a meta de 100 arrobas durante anos consecutivos, a coroa orientou o governador de Minas Gerais, o Visconde de Barbacena, a apertar o cerco. A decisão revoltou a população local, e as cidades de Mariana e Vila Rica pediram ao governador que deixasse de fazer a cobrança. Esta derrama foi, de fato, suspensa em 1789. Mas a semente da insurreição já estava plantada. Tiradentes seria executado em 1792. 

“A derrama foi a gota d’água num cenário muito complexo, caracterizado pela insatisfação das elites mineiras ante a política econômica da Coroa Portuguesa. A notícia da derrama foi o estopim de um conjunto de tensões”, diz a professora Adriana Romeiro. 

“Sem sombra de dúvidas a inconfidência precisa ser lida como uma forma de contestação a um certo arrocho fiscal das cobranças da derrama a partir de 1777”, afirma a professora Claudia. 

Mas o ministro Fernando Haddad, que como acadêmico tinha mais interesse em estudar a União Soviética que o Brasil Colônia, talvez não esteja ciente das lições do século XVIII. 

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