Os shows da turnê “Tempo Rei”, que marca a despedida de Gilberto Gil das grandes excursões, contam com um momento de catarse militante.
Lá pelas tantas, um vídeo exibido no telão traz um depoimento de Chico Buarque sobre a música “Cálice”, escrita pelos dois durante o regime militar. É a deixa para o público gritar o lema “Sem Anistia” a plenos pulmões — e pedir, com muitos xingamentos, a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos envolvidos no 8 de janeiro.
No início deste mês, o próprio Chico subiu ao palco para cantar o tema com Gil, no Rio de Janeiro. A plateia, é claro, ecoou o mantra “Sem Anistia” como se não houvesse amanhã.
A dupla repetiu uma performance de 2018, quando se reuniu para interpretar a canção e protestar contra a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, durante o Festival Lula Livre (realizado no Rio com recursos de movimentos sociais e entidades sindicais).
A diferença, agora, é quem banca o protesto: o contribuinte brasileiro, por meio de um patrocínio milionário dos Correios.
Mesmo afundada na maior crise financeira de sua história de mais de 360 anos, a estatal paquidérmica foi generosa e desembolsou R$ 4 milhões para ajudar na aposentadoria do cantor baiano.
Em 2024, os Correios registraram prejuízo de R$ 2,6 bilhões — um déficit quatro vezes maior do que o contabilizado no ano anterior. E, só no primeiro trimestre deste ano, o rombo chegou a R$ 1,7 bilhão.
Ainda assim, a empresa já gastou R$ 38,4 milhões em patrocínios desde a volta do PT ao poder (enquanto o governo anterior investiu cerca de R$ 430 mil por ano). De quebra, reajustou o salário de seu presidente em 14% nos últimos dois anos.
Presidente que, por sinal, é acusado de fazer nomeações controversas para cargos de confiança e até foi condenado por assediar um funcionário. Desconhecido do grande público, o gestor da maior estatal de logística da América Latina atende pelo nome de Fabiano Silva dos Santos.
Mas é o seu apelido nos bastidores que chama a atenção: “Churrasqueiro do Lula”.
Aparelhamento estatal
Advogado e professor universitário, Fabiano Silva dos Santos, de 48 anos, costuma contar que cresceu frequentando diretórios do Partido dos Trabalhadores. Seu pai era metalúrgico em Cajamar (SP) e, segundo ele, foi um dos fundadores da legenda.
O próprio Fabiano chegou a se candidatar, em 2000, a uma vaga na Câmara de Vereadores de Jundiaí (SP) pelo PT. Porém recebeu 398 votos e não se elegeu.
O que não o impediu de se engajar na militância e exercer cargos em gestões petistas. Especialista na área previdenciária, trabalhou na prefeitura de São Paulo (nas administrações de Marta Suplicy e Fernando Haddad) e no Governo Federal.
Mas foi servindo em outra frente que ele se destacou e ganhou a confiança dos principais caciques do partido. Após a prisão de Lula, em abril de 2018, Silva dos Santos se tornou um dos principais nomes do grupo Prerrogativas — criado por advogados de esquerda para combater a Operação Lava Jato e tirar o então ex-presidente da cadeia.
Em 2022, o Prerrô (como o coletivo também é chamado) teve participação ativa na campanha presidencial, organizando jantares para arrecadar fundos e conquistar o apoio de empresários e magistrados. A recompensa pela lealdade veio na forma de aparelhamento estatal: cerca de 30 membros do grupo ocupam postos em tribunais superiores, ministérios e empresas públicas como os Correios.
Segundo o site de cobertura política Poder 360, quando a turma do Prerrogativas promove uma confraternização mais íntima, petit comité, Fabiano Silva dos Santos assume a cozinha e prepara as carnes que o presidente da República tanto aprecia (e prometeu aos eleitores). Daí o apelido de “churrasqueiro de Lula”.
O comandante dos Correios, no entanto, garante que jamais pilotou a grelha para alimentar o marido de Janja. “Como brasileiro nato, adoro um churrasco. Mas não faço churrasco para o presidente. As pessoas precisam criar uma alcunha para diminuir o trabalho ou diminuir intelectualmente os outros”, disse, sobre o apelido, à revista IstoÉ.
Bolsonaro e as “blusinhas”
A exemplo de outros gestores do atual governo, Fabiano Silva dos Santos culpa Jair Bolsonaro pela crise e o “sucateamento” de sua autarquia.
Segundo Silva dos Santos, os Correios deixaram de receber investimentos em tecnologia e infraestrutura durante quatro anos, pois estavam sendo preparados para a privatização. Ainda de acordo com ele, Bolsonaro retirou direitos trabalhistas dos funcionários, o que resultou numa grande judicialização e num passivo difícil de se administrar.
A empresa ainda atribui o rombo de 2024 aos efeitos do novo marco regulatório das compras internacionais — ou seja, à cobrança de imposto de importação em mercadorias (a famigerada “taxa das blusinhas”).
Em maio, os Correios anunciaram um pacote de corte de gastos na tentativa de economizar R$ 1,5 bilhão ainda neste ano. As medidas, em sua maioria, buscam a redução de despesas com pessoal, como a suspensão temporária de férias e a redução da jornada de trabalho com ajuste proporcional da remuneração.
O sacrifício, no entanto, não inclui o presidente, cujo salário saltou, em dois anos, de R$ 46,7 mil para R$ 53,2 mil mensais.
Além disso, Silva dos Santos fez a estatal perder outros R$ 100 mil em um processo de assédio moral movido por um ex-superintendente — que alega ter sido perseguido após criticar a política comercial adotada a partir de 2023. A juíza que proferiu a sentença considerou que houve “retaliação” por parte da presidência.
Sua situação foi agravada por duas nomeações altamente questionáveis. Fabiano mantém como assessores pessoais Júlio Vicente Lopes e Maurício Marcellini, ambos clientes do escritório de advocacia de sua ex-mulher e acusados de ilícitos financeiros na gestão de fundos de pensão, inclusive no âmbito da Operação Greenfield (um braço da Lava Jato).
Os Correios, contudo, negam o conflito de interesses e afirmam que não há condenações com trânsito em julgado contra Lopes e Marcellini.

Homenagem a Janja
A Lava Jato, aliás, continua sendo combatida pelo Prerrogativas. No final de maio, o grupo protocolou, junto à Procuradoria-Geral da República (PGR), a abertura de um procedimento investigatório criminal contra o senador Sergio Moro, o ex-procurador Deltan Dallagnol e a juíza federal Gabriela Hardt por supostas irregularidades na operação.
E, em abril, o coordenador do coletivo, o advogado Marco Aurélio de Carvalho, virou assunto na imprensa ao revelar que atua de forma gratuita na equipe de defesa do ex-presidente do Peru, Ollanta Humala, e de sua mulher, Nadine Heredia — ambos condenados a 15 anos de prisão por lavagem de dinheiro, em um desdobramento da Lava Jato naquele país.
Na ocasião, Nadine havia recém-chegado ao Brasil, num avião da Força Aérea Brasileira, após o presidente Lula autorizar o seu asilo diplomático. Segundo Carvalho, que chegou a ser cotado para substituir Flávio Dino no Ministério da Justiça, trata-se de um “processo humanitário”, e por isso ele se engajou sem receber remuneração.
Desde dezembro de 2024, o Prerrogativas também está envolvido em outra pauta cara à esquerda: a cobrança de rigor nos julgamentos dos envolvidos no 8 de janeiro e na suposta “trama golpista”.
A adesão ao lema “Sem Anistia” foi anunciada durante o tradicional jantar de fim de ano do grupo, no qual a primeira-dama Janja Lula da Silva foi homenageada. Antes de chamar Janja ao palco para uma longa sessão de adulação, Marco Aurélio de Carvalho defendeu a união do Prerrô em torno do tema, justificando que “o fascismo e a extrema direita são ameaças constantes à democracia”.
Desde então, membros do coletivo têm assinado artigos e concedido entrevistas sobre o assunto. Numa dessas matérias, publicada em abril pelo jornal Folha de S. Paulo, Carvalho afirmou que a eventual aprovação de uma lei para diminuir a pena dos condenados do 8 de janeiro seria “uma verdadeira aberração”.
O Prerrô ainda organizou, no fim de março, um “Ato Público Sem Anistia” em São Paulo, que contou com a participação de políticos do PSOL, do PCdoB e do PT — entre eles José Dirceu e José Genoíno, ambos beneficiados pela Lei da Anistia de 1979, sancionada pelo último presidente do regime militar, João Batista Figueiredo.
Voltamos, então, à turnê “Tempo Rei”.
Enquanto grita “Sem Anistia” em shows bancados pelos Correios, o público reverbera, sem saber, a agenda de Fabiano Silva dos Santos, Marco Aurélio de Carvalho e outros advogados de esquerda que hoje ocupam pelo menos 30 cargos de proa no governo Lula.
O palco pode ser de Gil, mas quem assina o roteiro é o Prerrô.
A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com a assessoria de imprensa dos Correios no último dia 16 e chegou a enviar perguntas para uma entrevista com Fabiano Silva dos Santos — mas não recebeu as respostas até a conclusão deste texto.