O uso de veículos privados por funcionários públicos via comodato, ou seja, emprestados sem custo, está se tornando comum no governo. O que era exceção – e gerava até certo constrangimento –, virou farra e se tornou “inspiração” como “modelo de economia” na gestão pública. Depois do Tribunal de Contas da União e da Presidência da República, agora é a vez da Polícia Federal solicitar doações às montadoras.
A opção pode parecer menos onerosa na ponta do lápis do ponto de vista operacional, contudo, a contrapartida não fica clara, segundo especialistas em administração pública – especialmente se estas empresas que fornecem os carros estiverem envolvidas em processos judiciais.
“O comodato em si não é ilegal, mas não vejo com bons olhos para administração pública. Quando um serviço é contratado, licitado e pago, sabemos exatamente quanto está custando. Quando é feito de graça, não sei o que está custando. Não fica claro. Me parece uma burla o chamamento para um favorecimento que não está sob controle sobre qual vai ser a contrapartida”, diz o jurista e comentarista da Gazeta do Povo, André Marsiglia.
Polícia Federal quer carros para o presidente e ministros do STF
O Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Polícia Federal, publicou um chamamento público em maio pedindo, sob a forma de comodato, às montadoras e revendedoras a prestação de serviço de empréstimo gratuito de veículos.
O estudo técnico que acompanha o chamamento público diz que o pedido visa atender à crescente necessidade de fortalecer a segurança de autoridades nacionais e estrangeiras, “incluindo o presidente da República e o vice-presidente, familiares, ministros do governo, ministros do Supremo Tribunal Federal, dignitários estrangeiros e depoentes especiais”.
Junto ao edital, a Polícia Federal mostra cálculos de que a compra e aluguel são inviáveis com o atual orçamento e atual demanda, o que justificaria o comodato. Segundo a corporação, a quantidade de carros disponíveis hoje não é suficiente, “tendo em vista o aumento na quantidade de autoridades que utilizam os serviços de escolta e segurança”.
Marsiglia, no entanto, chama a atenção que a contrapartida não está clara e questiona a moralidade do processo, uma vez que estas empresas podem se beneficiar de algum favorecimento por ter contato mais próximo ao governo.
“A gente pode ter a ilusão que pagar por um serviço é pior. Mas não pagar é ficar devendo, ainda que indiretamente, e isso é ruim para o Estado. Se amanhã a empresa é investigada e o Estado ficar constrangido de investigar um parceiro que forneceu algo, isso nos deixará reféns”, diz Marsiglia.
“É uma condição imoral que pode flertar com ilegalidade se em algum momento essa troca serviu de acesso para que empresa servisse para algum tipo de favorecimento”, acrescenta.
Montadora chinesa processada por trabalho em condições análogas à escravidão cedeu carros ao TCU e STJ
Um caso emblemático do risco de constrangimento institucional envolve a montadora chinesa BYD, que está construindo uma fábrica na metropolitana de Salvador, em Camaçari (BA). A empresa já cedeu por comodato veículos elétricos à Presidência da República (um modelo SUV Tan que custa em média R$ 530 mil), 20 carros zero quilômetro do modelo Seal para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e nove Seal para o Tribunal de Contas da União (TCU).
Em dezembro passado, a empreiteira chinesa Jinjiang, contratada pela BYD, foi alvo de fiscalização que resgatou 163 trabalhadores chineses em situação análoga à escravidão. Após o escândalo, a BYD encerrou o contrato com a terceirizada. O episódio, no entanto, expôs o risco de vínculos políticos com empresas que podem vir a ser investigadas.
Além disso, a BYD vai desfrutar de um incentivo fiscal que foi prorrogado na reforma tributária. O dispositivo que renovou a desoneração ficou conhecido nos bastidores do Congresso como “Emenda Lula”, graças ao patrocínio do presidente.
Na reforma tributária aprovada em 2023, um dispositivo patrocinado pelo governo Lula prorrogou até 2032 os incentivos fiscais federais para montadoras instaladas no Nordeste, Centro-Oeste e Norte. O benefício, que existe desde o fim dos anos 1990 e foi estendido anteriormente, acabaria em 2025.
O advogado Frederico Afonso, especialista em direito público, afirma que não se trata de autoridades e ministros não usarem marcas, mas é preciso ter descrição, como os cargos exigem. O que não é o caso de carros usados pela Polícia Federal, ainda mais se forem grifados com a logo, afirma Afonso.
“Mesmo o veículo sendo descaracterizado atrela a marca à imagem da polícia. Esbarra na moralidade. Não basta que ato seja legal, obrigatoriamente ele precisa ser moral e precisa aparentar que é legal”.

Carros pretos, variados e elétricos
O estudo técnico da PF apresentado com o edital argumenta que as ações inerentes à segurança de dignitários e testemunhas são complexas e demandam veículos com características diversas, daí a necessidade de modelos que vão do “executivo e SUV 4X4 blindado” ao “sedan elétrico ou híbrido plug-in”.
Os veículos serão utilizados na região do Distrito Federal e entorno, mas, dependendo da agenda das autoridades sob responsabilidade da PF, podem ser usados nos outros estados.
A lista não fala no número exato de carros, mas a PF informa que aceita a doação de “um a dez” unidades de cada, e que podem ser elétricos, híbridos ou a combustão. De preferência, na cor preta ou, como segunda opção, em tons sóbrios como o cinza.
Embora o edital esteja aberto para todas estas alternativas, o documento reforça que a “adoção de veículos elétricos pela Polícia Federal representa um avanço significativo na redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE)”.
“A aquisição visa resolver problemas de alto custo operacional, dependência de combustíveis fósseis e a necessidade de reduzir as emissões de poluentes, atendendo ao interesse público de preservação ambiental e eficiência administrativa”, diz o trecho.
Afonso critica a escolha por dois motivos. Primeiro porque existe um lobby do governo para fomentar a produção de veículos elétricos no país. Segundo, diz ele, é que os elétricos não são indicados para a atividade proposta:
“Um carro cuja finalidade é segurança precisa de agilidade e abastecimento tático. A Polícia Federal tem diligência, deslocamento rápido e com prioridade. Não é o caso do carro elétrico. O modelo seria interessante para a polícia que patrulha na cidade a 20 quilômetros por hora”, diz o advogado.
O outro lado
Procuradas pela Gazeta do Povo no dia 12 de junho, a Presidência não respondeu. A da Polícia Federal afirmou que a demanda foi enviada ao setor responsável para análise e manifestação e que entraria em contato quando tivesse um retorno, mas não se pronunciou sobre as dúvidas enviadas até fechamento desta reportagem, nesta terça-feira (17).
O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou à Gazeta do Povo que nunca utilizou por empréstimo/comodato veículos da Polícia Federal para transporte de seus ministros. Segundo a Corte, a Polícia Federal é acionada apenas quando a análise de risco em situações excepcionais (como eventos de grande porte) exige o reforço de escolta de autoridades.
“O que o Tribunal usa é o serviço de segurança da PF (com ou sem veículo) para eventos específicos, nunca equipamentos. O STF utiliza apenas veículos próprios, alugados por contrato ou mediante parceria com tribunais locais para o transporte de seus ministros. Empréstimo ou comodato significa passar a posse do veículo para que um terceiro utilize. Isso nunca existiu.”, disse o STF em nota.