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Cuiaba - MT / 15 de agosto de 2025 - 6:55

Tapas, empurrões e xingamentos: o fim do decoro na Câmara dos Deputados 

Um empurra-empurra em comissão aqui, um crime contra a honra ali, um dinheiro na cueca acolá. Assim seguem os noticiários das casas legislativas nacionais. 

Na última semana, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) foi atingido com um golpe baixo. A deputada Camila Jara (PT-MS) desferiu uma cotovelada no mineiro diante do plenário lotado, diante das câmeras e dos colegas.  

Apesar de muitíssimo criticada, a parlamentar tentou justificar sua conduta pelo seu tamanho, fragilidade e contexto. A petista tem 1,60 m, pesa 49 quilos, está em tratamento contra o câncer e reagiu, segundo ela, como qualquer mulher reagiria ao ser pressionada por um homem em uma multidão. 

O episódio não foi inédito. Em junho de 2024, Glauber Braga (PSOL-RJ) também protagonizou uma cena violenta que ainda pode custar seu mandato. Braga, irritado com a provocação de um influenciador do Movimento Brasil Livre (MBL), tratou de expulsá-lo da Câmara Federal com chutes e pontapés. 

Um pouco antes, em dezembro de 2023, deputado Messias Donato (Republicanos-ES) foi atingido por um tapa no rosto desferido por Washington Quaquá (PT-RJ) durante uma sessão solene da Câmara. A quebra de decoro não deu em nada. O ministro Zanin considerou o caso como “agressão e retorsão imediatas e proporcionais”. 

Mas a falta de comedimento parlamentar não atinge somente a esquerda. Em fevereiro deste ano, o deputado Marcos Pollon (PL-MS) se exaltou no plenário da Câmara durante um discurso na tribuna. Por considerar perseguição a parlamentares penalizados por seus discursos, Pollon usou palavras de baixo calão citando casos de colegas presos, processados ou cassados por declarações públicas e defendeu a imunidade parlamentar prevista no artigo 53 da Constituição.

No auge do pronunciamento, usou os termos “f…-se” e “c….lho”, afirmando estar “há dois anos sendo moderado nessa m….” e que a moderação, na defesa da verdade, acabaria servindo à mentira.

Outros episódios ocorreram em abril deste ano, quando o deputado Gilvan da Federal (Republicanos-ES) cometeu dois impropérios. O primeiro, durante uma reunião na Comissão de Segurança Pública (CSP). Gilvan disse que desejava a morte de Lula.

Depois, em outra reunião da mesma comissão, o deputado citou o apelido de “Amante”, em referência a forma como Gleisi Hoffmann (PT-PR) era identificada na planilha da Odebrecht investigada pela Lava Jato, e sugeriu que ela deveria ser uma “prostituta do caramba”. O Conselho de Ética da Câmara dos Deputados suspendeu o mandato do parlamentar por seis meses e deve investigar sua conduta para definir se Gilvan da Federal será punido definitivamente ou não.

O Parlamento brasileiro, com todos os seus problemas, costumava ser um lugar onde todos os lados concordavam em seguir algumas regras de boa convivência. Mas, na última década, e especialmente de 2018 para cá, essas normas estão sendo violadas com cada vez mais frequência.

Redes sociais, espetáculo e “políticos que não fazem política” 

Uma das transformações centrais da última década é a exposição dos parlamentares nas redes sociais. Acostumados a falar para os próprios seguidores, muitos deputados preferem agradar o público com discursos inflamados enquanto deixam de lado a articulação política com seus pares. 

Embora na internet o opositor ideológico seja tratado como um inimigo público, no Congresso Nacional o defensor de uma ideia contrária é o colega que se senta ao lado no plenário. Caso um deputado não saiba respeitar um par, tampouco seus projetos serão respeitados. 

Estudos e relatórios sobre o uso do X (ex-Twitter), Facebook e Instagram por deputados mostram que muitos veem essas plataformas como ferramenta principal de comunicação e de construção de imagem. Às vezes em detrimento da articulação política dentro do Congresso (negociação, convencimento de pares, construção de maioria).  

Se por um lado, a vitrine pública é imediata, dá retorno eleitoral e engajamento político, por outro, o trabalho colegiado fracassa por falta de negociações e no menor esforço em convencer outros parlamentares. 

O resultado prático dessa realidade é que cresce a percepção de “políticos que não fazem política”. Isto é, legisladores que sabem mobilizar público, mas não conseguem ou não querem construir consensos na Casa. Isso cria mais espetáculo e menos governabilidade.  

Isso explica a escalada de quebras de decoro? 

Embora seja arriscado apontar causas diretas, há uma correlação observável: à medida que a notoriedade digital se sobrepõe ao mérito deliberativo, a linha do decoro enfraquece. Mensagens polarizadas, ofensas pessoais e embates virtuais geram cliques. Mas a ilusão do engajamento nas redes sociais tende a maquiar a percepção do custo político, especialmente quando seguidores respondem apoiando com curtidas e comentários inflamados às condutas indecorosas dos parlamentares. 

O deputado Glauber Braga, por exemplo, ainda pode perder o cargo. Seu processo de cassação foi aprovado pela Comissão de Ética, rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em fase recursal e agora espera ser pautado no Plenário da Câmara por Hugo Motta (Republicanos-PB). 

Ainda que os casos de quebra de decoro se multipliquem, como no exemplo recente de Braga, sanções efetivas como a cassação quase nunca acompanham esse volume. 

Imunidade parlamentar não exime a falta de decoro

O artigo 53 da Constituição garante que deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Contudo, essa prerrogativa não é vista como absoluta pelo STF. A corte já decidiu “excesso de linguagem pode configurar, em tese, quebra de decoro, a ensejar o controle político” pela Casa Legislativa a que o parlamentar pertence. Em outras palavras, a imunidade protege o que é inerente ao mandato, mas não livra o parlamentar de responder por ofensas que ultrapassem os limites da civilidade e da dignidade institucional.

Gilmar Mendes, em artigo publicado pelo Estadão em 2022, reforçou que “a imunidade parlamentar não comporta discursos difamatórios, mas apenas declarações vinculadas ao mandato político”. Isso significa que ataques pessoais ou acusações com tom ofensivo como chamar outro parlamentar de “vigarista” ou “idiota incompetente”, por exemplo, extrapolam o campo da imunidade e podem motivar representações por quebra de decoro.

Cassado por deixar-se fotografar em trajes de dormir

Para se fazer uma comparação da crescente perda da elegância parlamentar, o primeiro caso de cassação por falta de decoro ocorreu em 1949. Edmundo Barreto Pinto (PTB-DF), deputado federal constituinte, entrou para a história após ser fotografado de cueca samba-canção e smoking para uma reportagem da revista O Cruzeiro em 1946.  

Ainda que o parlamentar tenha se defendido alegando ter sido tapeado pelo fotógrafo que prometeu só expor a parte superior do traje na publicação, o ato foi escandaloso demais para o parlamento brasileiro daquela época. 

Recorte do jornal O Cruzeiro de 1946. Na edição, o deputado Edmundo Pinto (PTB-DF) foi fotografado em trajes íntimos. A imagem foi considerada quebra de decoro parlamentar e, por isso, perdeu o mandato. (Foto: Reprodução/Biblioteca Nacional)

No século passado o padrão de decoro era bem mais alto. A foto de um parlamentar em trajes imodestos foi mais do que suficiente para acabar com sua carreira política. Ironicamente, os parlamentares de hoje mostram muito mais e com menor pudor nas próprias redes sociais. O que antes era motivo de grande escândalo, hoje vira meme, ganha curtidas e até ajuda a criar uma imagem “gente como a gente”.

Mais performáticos e menos aristocráticos 

O termo “aristocracia” tem origem no grego e significa “governo dos melhores”. Na filosofia clássica, essa forma de governo pressupunha que líderes deveriam ser moralmente e intelectualmente superiores, garantindo decisões sábias e fundamentadas.  

Porém, no contexto político atual, o poder está longe de se apoiar no mérito técnico ou na capacidade deliberativa, sendo sustentado cada vez mais no carisma, nas estratégias eleitorais, no dinheiro e na influência digital.  

A postura política, que deveria ser centrada na competência e no debate de ideias, cedeu lugar à busca por espetáculo. Não há sinais de que as coisas vão melhorar tão cedo.

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