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Cuiaba - MT / 16 de agosto de 2025 - 7:14

Ele foi pastor, tentou 'curar gays' por 18 anos, hoje é casado com um homem

LUCIANA SPACCA

DO UOL

Durante 18 anos, o ex-pastor evangélico Sergio Viula, 56, pregou sobre a “cura gay”. Mais do que isso: acreditava que ele mesmo tinha sido “curado” de seu desejo por outros homens.

“Eu achava que Deus era capaz de fazer qualquer coisa na minha vida, desde que eu tivesse fé. Me entreguei completamente para aquilo e vivia a ‘cura’ porque eu realmente acreditava nela”, revela Sergio.

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Após ser casado por 14 anos com uma mulher e ter dois filhos, ele se separou, abandonou a igreja, se assumiu gay e vive há 10 anos com outro homem.

“Minha ex-mulher também era da igreja. Fiquei casado até que chegou a um ponto em que eu não aguentava mais, eu não estava mais feliz com aquilo que estava vivendo”, conta.

‘Queriam me ganhar para Cristo’
Filho de católicos praticantes, Sergio teve a infância marcada pelo pensamento religioso. “Fui batizado na igreja católica e fiz a primeira comunhão. Fui criado com a ideia de que um homem jamais poderia ficar com outro homem, que isso não era correto, que era pecado.”

Apesar da influência católica dentro de casa, Sergio acabou se convertendo à religião evangélica ainda adolescente.

“Com 15 para 16 anos, comecei a trabalhar como office boy numa empresa de comércio exterior e muitos dos meus colegas eram evangélicos. Eles percebiam que eu era gay e queriam me ganhar para Cristo. Virei a missão deles e acabei me deixando convencer. Me encantei com a pregação dos pastores porque era diferente da missa. A missa era muito regrada, muito previsível”, lembra.

“Sempre digo que o controle que a religião exerce sobre as pessoas é por meio da culpa, do medo e da ambição. Com a culpa é assim: você está errado, você tem de se consertar e nós temos aqui a solução para o seu problema. Aí vem o medo: se você não se consertar, será punido. Quando nada disso funciona, vem a ambição. Tem sempre alguém para dizer que você podia ser mais próspero, que Deus vai te dar muito se você entregar sua vida a Jesus”, acrescenta.

Sergio começou a frequentar uma igreja evangélica neopentecostal. Ia aos cultos e passou a se dedicar totalmente ao ministério. “Eles não aceitavam a homossexualidade de jeito nenhum. Se você é gay, ou vai viver no celibato ou vai ser transformado”, explica.

“Para mim, não existia preço alto para a minha dedicação. Porque, se eu não tivesse a missão, eu tinha a culpa e o medo. Achava que estava me entregando, por amor genuíno a uma crença, a um Deus verdadeiro, motivado por amor”, conta.

‘Acreditava que tinha sido transformado’
Por anos, Sergio falou sobre a “cura gay” para os fiéis. Ele passou a dar depoimentos sobre sua “conversão” antes mesmo de se tornar pastor.

“Na igreja, acabei me envolvendo com um grupo de arte que fazia peças sobre diversos assuntos sociais e também falava sobre homossexualidade. Tinha uma peça em que uma travesti se convertia, por exemplo”, conta.

“Já como pastor, ouvia dos membros da igreja sobre tudo o que você pudesse imaginar. Sabia dos dramas de cada um. E, quando tinha gay na igreja, era sempre a mesma coisa: aquela primeira euforia da conversão, ela te toma de tal maneira que parece que você não é nem mais desse planeta. Você quer romper com tudo o que fazia antes”, recorda.

Ele se casou antes dos 20 anos de idade e teve dois filhos.

“Eu acreditava sinceramente que tinha sido transformado, que era uma nova criatura. Como eu podia dizer que a palavra de Deus estava errada? Então, mesmo que houvesse qualquer sinal contrário, eu me agarrava ao que a palavra dizia, porque a palavra era real e o resto era ilusório. Você nega a si mesmo, nega seu corpo, sua psique, sua experiência, sua história, tudo em nome de um dogma”, comenta.

Sergio conta que, quando tinha dúvidas sobre a sua “cura”, se apegava também aos testemunhos que ouvia de outras pessoas que afirmavam terem sido convertidas. “Muitas vezes eu acordava incomodado porque sonhava que estava tendo relações sexuais com outros homens. Não entendia por que essas coisas vinham na minha cabeça, já que eu tinha sido transformado. Aí interpretava isso como uma ação diabólica, querendo me levar de volta para o que eu era.”

‘Voltei destroçado’
A vida de Sergio começou a mudar em 2000, após uma viagem para Singapura. “Fui fazer um treinamento sobre liderança, que tinha ligação com a igreja. Lá, conheci um rapaz e tivemos um caso. Quando voltei, estava destroçado, porque a alegria toda que eu senti naquele momento foi como se a bolha em que eu vivia tivesse sido furada”, diz.

O professor só contou o que tinha acontecido para a esposa um ano depois: “Nesse meio tempo, fui descrendo das coisas igual a uma cascata. Não só na questão da sexualidade, mas na questão em geral da igreja, de tudo o que era pregado ali dentro. Contei para a minha mulher, ficamos um tempo separados e acabamos voltando. Até que chegou o momento em que não dava mais para continuar vivendo daquela forma”.

Em 2003, Sergio se separou de vez —da esposa e da igreja— e se assumiu homossexual. “Chamei os pastores e conversei. Também comecei um blog, fiz denúncias sobre práticas de terapia de conversão, de cura gay, entre várias outras coisas que eu passei a denunciar na internet. Eu poderia ter ficado na minha, mas quis fazer dessa forma”, diz ele.

“Não sinto culpa [por ter pregado a cura gay], porque estava reproduzindo uma coisa na qual eu acreditei veementemente. Fui uma vítima do sistema e reproduzi o sistema. Mas, se tem uma coisa que eu posso dizer, é a seguinte: a cura gay é mentira. E eu fui besta de acreditar e reproduzir”, finaliza.

‘Fiquei 4 anos sem falar com meus pais’

Após o rompimento com a igreja e com a esposa, Sergio passou por momentos difíceis.

“Não levei nada, tive de começar do zero. Deixei tudo o que eu tinha com a minha ex-mulher e os meus filhos. Fiquei quatro anos sem falar com meus pais. Precisei lidar com essa mudança, em que eu não tinha um garfo, não tinha dinheiro para comprar geladeira, fogão… Tive de me virar durante um tempo assim até conseguir reconstruir tudo”, conta.

Hoje, Sergio está casado há 10 anos com o recepcionista Andre Dias, 34, e tem uma ótima relação com os pais e também com os filhos. “Meus filhos sempre me apoiaram, nunca tive problemas com eles sobre me assumir. E meus pais me pediram perdão. Nossa relação se restabeleceu e ficou ótima. E eles adoram o André. Minha mãe prefere fazer compras com ele, diz que ele tem mais paciência do que eu”, brinca o professor.

De pastor a ateu
Sérgio afirma que não acredita mais em Deus ou em religião. “Eu vivo na total descrença. Não tenho religião nenhuma, não tenho crença. Perdi pessoas queridíssimas da minha família e nunca mais fiz uma oração sequer”, diz ele.

“Para mim, nada é mais libertador do que ser um ateu humanista. Hoje, olho para as religiões e as crenças como manifestações culturais. Entendo que tenha o seu valor na vida das pessoas. Mas, pessoalmente, não acredito mais”, acrescenta.

Sempre que pode, o professor alerta as pessoas sobre as mentiras da “cura gay”. “A nossa luta hoje tem de ser por tornar ilegal qualquer tentativa de fazer a terapia de conversão, baseado no que a ciência mesmo já demonstrou.”

“As pessoas que vão para os centros de recuperação e conversão não saem de lá melhores do que entraram, pelo contrário. Muitas delas vêm de lugares de vulnerabilidade social, psicológica e econômica. Elas são sobrecarregadas com esses dogmas que as fazem achar que é o mundo contra elas”, reforça.

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