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Cuiaba - MT / 27 de julho de 2025 - 9:28

A “vadiagem” ainda é um delito? A lei diz que sim. O STF diz que não

O Brasil enfrenta uma crise social profunda por causa do aumento da população em situação de rua. Em muitas cidades, há uma presença crescente de adultos, aparentemente saudáveis e em idade produtiva, vivendo nas calçadas, praças e viadutos. Além de causar comoção, essa realidade levanta preocupações legítimas sobre os riscos à segurança pública.  

O que muitos brasileiros talvez não saibam é que ainda existe uma previsão legal sobre esse tema: a “vadiagem” segue tipificada como contravenção penal. Segundo o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941), incorre nessa infração quem “entrega-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. 

Mas, embora esteja em vigor formalmente, a contravenção não é mais punível graças ao Supremo Tribunal Federal.  

Supremo decidiu que a lei perdeu o efeito em 1988

O STF estabeleceu, com base em várias decisões com repercussão geral, que a norma não é condizente com Constituição de 1988 porque viola princípios como a dignidade da pessoa humana. Com isso, não é mais permitido abordar pessoas em situação de rua com base na lei anti-vadiagem.

Além disso, o STF já proibiu a remoção forçada dessas pessoas e de seus pertences, determinando que o poder público respeite seus direitos fundamentais, salvo em situações excepcionais e devidamente justificadas. A corte também estabeleceu que a revista pessoal só é válida se houver fundada suspeita — ou seja: indícios objetivos e concretos de posse de armas, drogas ou outros itens ilícitos.

Assim, a contravenção da vadiagem, antes punível com prisão de 15 dias a 3 meses, simplesmente foi descartada pela decisão judicial e caiu em desuso. 

Aumento de 1.400% no número de pessoas em situação de rua em dez anos 

O número de pessoas que vivem em espaços públicos tem crescido de forma expressiva nos últimos anos.

Em março deste ano, o Brasil tinha 335.151 pessoas vivendo em situação de rua, segundo levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os números levam em conta o Cadastro Único do governo federal.

Do total de moradores de rua, 9.933 são crianças e adolescentes, 294.467 são adultos entre 18 e 59 anos, e são 30.751 idosos. Além disso, 84% da população em situação de rua é composta por homens.

O dado preocupa não só pelo volume, mas pelo ritmo acelerado de crescimento: em pouco mais de uma década, o número de pessoas nas ruas aumentou quase quinze vezes. Em dezembro de 2013, eram 22,9 mil registrados nessa condição.  

As estatísticas sobre os moradores de rua nem sempre são confiáveis porque essas pessoas não têm endereço fixo. Mas o levantamento da UFMG está alinhado com a percepção dos moradores das grandes cidades brasilieiras.

Capitais têm mais moradores de rua 

A maior concentração de moradores de rua população está na Região Sudeste. São Paulo é o estado com maior número absoluto de pessoas em situação de rua, com 42,8% do total nacional, seguido pelo Rio de Janeiro (10%) e Minas Gerais (9%). Nas capitais, São Paulo lidera com 96.220 pessoas, à frente de Rio de Janeiro (21.764), Belo Horizonte (14.454), Fortaleza (10.045) e Salvador (10.025). 

Estudo mostra aumento do número de moradores de rua nas capitais. (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

O levantamento da UFMG também analisou a evolução regional: 12 capitais apresentaram aumento no número de pessoas em situação de rua desde 2013, incluindo Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Considerando a proporção por mil habitantes, Boa Vista (RR) tem a maior taxa, com 20 pessoas em situação de rua por 1 mil habitantes, enquanto São Paulo tem oito por mil, Florianópolis, sete por mil, e Belo Horizonte, seis por mil.  

Como era a abordagem antes e como é agora 

Mesmo antes da decisão do STF, os casos de moradores de rua condenados por vadiagem eram praticamente inexistentes. A principal utilidade da lei era facilitar a abordagem policial a pessoas em situação de rua.

Segundo o tenente-coronel da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) Olavo Mendonça, até recentemente a revista pessoal e a fiscalização de moradores de rua eram consideradas procedimentos padrão. Ele explica que, no passado, muitos desses cidadãos eram abordados com base em fundamentos legais como a contravenção de vadiagem.

De acordo com Mendonça, o contexto dessas abordagens incluía o fato de que muitos moradores de rua são usuários de drogas e, em alguns casos, portavam armas brancas para autodefesa, como facas ou objetos perfurocortantes. “Era comum que essas pessoas estivessem sem documentos, malvestidas, com objetos sem comprovação de propriedade e circulando em locais de venda de entorpecentes”, afirma o oficial. Nessa realidade, a revista preventiva se justificava, e, se nada fosse encontrado, o indivíduo era liberado. 

Contudo, o tenente-coronel ressalta que a atual legislação e as decisões do Judiciário exigem que a abordagem policial só aconteça quando houver indícios claros de que alguma ilegalidade está sendo cometida. “Hoje nós temos que fundamentar muito bem a abordagem preventiva. É preciso ter uma fundada suspeita e não é possível mais fazer essa busca da maneira que era feita antigamente”, explica. Ele avalia que essas restrições dificultam a atuação da polícia, especialmente diante da presença de pessoas em situação de rua que portam armas brancas ou estão sob efeito de drogas. 

Mendonça também critica a atual interpretação das normas por parte do Ministério Público, que em alguns locais impede a lavratura de termos circunstanciados mesmo quando há apreensão de objetos ilícitos. Ele pontua que a ausência de medidas legais eficazes tem gerado problemas para a segurança pública e defende que o tema precisa ser debatido com seriedade para garantir tanto os direitos individuais quanto a segurança da população. 

Manter ou não manter a punição à vadiagem? 

A importância do delito de vadiagem na legislação brasileira não é um consenso.   

Para Olavo Mendonça, não faz mais sentido prender alguém apenas por ser morador de rua. No entanto, ele pondera que o direito da polícia à abordagem preventiva deve ser preservado. “A pessoa que está na rua tem algum problema, senão não estaria na rua”, ele diz, mencionando casos de dependência química, transtornos mentais e comportamentos agressivos que justificariam a continuidade das abordagens com base em fundada suspeita. 

Mendonça também alerta que algumas permanecem em espaços públicos mesmo tendo residência fixa, com o objetivo de ocupar locais estratégicos para pedir dinheiro ou fazer uso de drogas. “Eles causam a degradação de espaços públicos e particulares”, relata. Por isso, Mendonça defende que a polícia tenha mais autonomia para realizar abordagens na rua.

Criminalista concorda com invalidade da lei 

O advogado criminalista Bruno Gimenes Di Lascio vê a própria redação da norma como incompatível com os princípios constitucionais e suscetível a abusos. Segundo ele, a lei é vaga e subjetiva: “Como aferir a habitualidade da pessoa ociosa? Um dia, dois dias, dez dias? Meses?”, questiona.   

Para Di Lascio, a imprecisão permite interpretações amplas e perigosas. “Um usuário do Bolsa Família é um ocioso vadio?”, questiona, apontando que a norma pode servir mais como instrumento político do que como solução real. “O tipo penal não diz ‘estar ocioso em via pública’, mas tão somente se entregar à ociosidade, ainda que dentro de casa. É desproporcional – e até antiliberal – tomá-lo como meio apto para fazer um reincidente se reabilitar”, argumenta. 

Di Lascio também critica a legitimidade de punir alguém apenas por não estar exercendo atividade produtiva, o que, em sua visão, colide com o direito individual de não fazer aquilo que não é obrigado. Para ele, em vez de contribuir para a ordem social, a manutenção da contravenção penal de vadiagem abre espaço para arbitrariedades e violações de direitos. “Qualquer justificativa para a ociosidade é válida como exercício regular de um direito”, afirma.. 

As origens históricas do delito de vadiagem

Algumas correntes ideológicas relacionam a origem conceitual da vadiagem aum preconceito histórico. Parte da esquerda vê na norma uma expressão de discriminação racial e social, fruto do chamado “racismo estrutural” e de resquícios do pensamento escravagista. Mas, para o advogado criminalista Bruno Gimenes Di Lascio, não é possível afirmar com certeza que a contravenção de vadiagem decorra de uma estrutura legal discriminatória, embora ele reconheça que a norma está desatualizada. “Não sei se a contravenção de vadiagem é um desdobramento da estrutura discriminatória incrustada na legislação – não sei nem se essa estrutura é real – mas a existência desse tipo infracional me parece anacrônica e antiquada”, afirma. 

Di Lascio contextualiza que a criação do tipo penal, em 1941, ocorreu num momento de êxodo rural, em que cidades recebiam migrantes sem estrutura para abrigá-los, e o controle sobre a ociosidade podia ser considerado uma forma de manter a ordem urbana. Hoje, no entanto, ele acredita que a norma é desnecessária, ainda que “a conduta possa ser vista como reprovável ou imoral”. 

Policial defende legislação descentralizada

Para o tenente-coronel Olavo Mendonça, a presença desordenada de pessoas em situação de rua não é apenas um desafio social, mas um problema direto de segurança pública.  

Ele afirma que, em Brasília, a concentração de moradores de rua nas imediações dos centros de acolhimento e restaurantes comunitários tem sido acompanhada por um aumento de crimes como furtos, roubos e brigas. “É notória a quantidade de moradores de rua que se acumulam do lado desses centros e começam a praticar crimes”, relatou.  

Mendonça argumenta que a degradação social do espaço público é visível onde há grande concentração de pessoas nessa condição. Especialmente porque, segundo ele, uma porcentagem significativa dessa população é dependente química. 

O oficial relaciona o crescimento da população em situação de rua a três fatores: o aumento do consumo de drogas, a crise econômica e a atuação de movimentos que, segundo ele, impedem a ação do Estado. Ele afirma que decisões do STF, como a descriminalização da posse de drogas, “causaram uma explosão de consumo e tráfico” e limitaram a atuação policial. “Você não pode mais apreender a faca que o morador de rua está andando drogado no meio da rua”, critica, classificando essa situação como parte de uma “inversão de valores perversa”. Para Mendonça, essa combinação de fatores agrava a insegurança e dificulta o enfrentamento da crise social nas grandes cidades.   

Uma solução possível, diz o tenente-coronel, é que a legislação penal seja descentralizada e que esses temas devem ser regulados localmente.  “Essa questão própria da vadiagem tem que ser mantida, pelo menos a rigor da legislação, para fundamentar o trabalho preventivo da Polícia Militar”, defende.

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