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Cuiaba - MT / 27 de julho de 2025 - 6:38

Há quase 200 anos, radicais islâmicos lançaram jihad no Brasil

Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, Salvador foi palco de uma das mais enigmáticas e violentas revoltas de sua história. Cerca de 600 africanos escravizados, liderados por muçulmanos, tomaram as ruas da cidade com armas artesanais, amuletos islâmicos, roupas brancas e a convicção de que travavam uma luta maior. A repressão foi rápida e brutal. Dezenas de mortos, centenas de presos, açoites públicos, deportações para outras províncias e para a África.

O episódio, que viria a ser conhecido como Levante dos Malês, é lembrado como um dos poucos momentos em que o Islã se insurgiu de maneira organizada no Brasil. Alguns historiadores veem na revolta uma simples rebelião de escravos. Mas outros, com base na liderança religiosa, nos símbolos e no discurso usados pelos combatentes, veem nele algo mais contundente: uma jihad.

República Islâmica da Bahia

Os elementos islâmicos são incontornáveis. Os combatentes usavam abadás brancos, típicos da tradição muçulmana, levavam orações escritas à mão, fragmentos do Corão, colares de contas representando os 99 nomes de Alá e códigos em árabe. Suas reuniões ocorriam em mesquitas improvisadas, em casas de oração e madraçais clandestinos, e os planos sugeriam um projeto ousado: libertar os prisioneiros malês, tomar o controle da cidade, confiscar os bens de brancos e pardos, e instaurar uma nova ordem política. Há indícios de que cogitavam, inclusive, a fundação de uma república islâmica na Bahia.

Essa hipótese ganha reforço na análise do historiador Alberto da Costa e Silva. Para ele, o Levante dos Malês reúne todos os elementos característicos de uma guerra santa: liderança religiosa, mobilização por fé e etnia, uso de símbolos corânicos e conexão direta com movimentos da jihad que ocorriam no mesmo período na África Ocidental. Um deles foi a jihad do xeque Usuman dan Fodio, que fundou o califado de Sokoto, atual Nigéria, e cujas ideias circularam entre os povos que mais tarde seriam trazidos à força para o Brasil.

A experiência vivida na África por muitos dos malês, que chegaram a Salvador após passarem por sociedades islamizadas, alimentava um imaginário político-religioso de resistência. Para Costa e Silva, a solidariedade étnica mencionada por Reis não exclui, mas reforça a ideia de uma jihad, já que muitos movimentos islâmicos aceitavam não-muçulmanos em suas fileiras, desde que compartilhassem os mesmos inimigos e objetivos.

Os historiadores que estudam o Levante dos Malês discordam sobre a importância do Islã para o movimento. João José Reis, autor do estudo mais abrangente sobre a revolta (A Rebelião Escrava no Brasil – A história do levante dos Malês em 1835), reconhece que os líderes da revolta eram todos muçulmanos, muitos deles alfabetizados em árabe e instruídos nas doutrinas corânicas. Ainda assim, Reis aponta que o levante teve a adesão de africanos de outros credos, inclusive os chamados animistas. Ele destaca que, embora o comando tenha sido “malê” — termo que designa os muçulmanos de origem iorubá, conhecidos como imalês —, a composição do grupo era africana no sentido mais amplo, reunindo diferentes etnias e culturas que compartilhavam o sofrimento imposto pela escravidão.

O que dizem os registros históricos

A leitura de que os malês queriam instaurar um governo islâmico é defendida por José Pereira da Silva, doutor em História Social. Em entrevista à Gazeta do Povo, ele afirmou que a Revolta dos Malês pode ser compreendida como a primeira jihad do continente americano. Ele sustenta que os revoltosos não lutavam apenas por liberdade individual ou melhores condições, mas por uma transformação político-religiosa mais profunda. Seus objetivos incluíam a criação de uma república islâmica, a liberdade de culto muçulmano, o combate à imposição do catolicismo, o fim da escravidão e o confisco dos bens da elite branca. “A proibição das práticas religiosas gerou a jihad”, afirma o professor, citando o Corão: “Combatei, pela causa de Alá, aqueles que vos combatem”.

Há ainda indícios mais contundentes de que os malês não apenas desejavam instaurar uma nova ordem muçulmana, mas pretendiam eliminar os não-muçulmanos que resistissem a essa transformação. Segundo João José Reis, um dos revoltosos capturados revelou que o plano envolvia matar todos os brancos e pardos que não fossem malês, e que os “cristãos” estavam entre os alvos diretos. O professor José Pereira da Silva reforça essa leitura, observando que a doutrina usada pelos líderes permitia o uso da força contra os que se opunham à fé islâmica. Essa dimensão violenta do projeto religioso, voltada à imposição do Islã sobre outros grupos, é uma das marcas que aproximam o levante baiano de movimentos jihadistas radicais que surgiram no norte e oeste da África ao longo do século XIX.

Quem era o líder da jihad baiana

A figura de Ahuma, considerado o principal líder espiritual do levante, é central nesse processo. Escravizado, ele atuava como mestre religioso e era respeitado por sua autoridade teológica. Sua atuação remete à figura do maulana, título concedido a estudiosos que, em determinadas tradições, podem proclamar a guerra santa. A ação, segundo os registros, teria sido planejada em ambientes de estudo religioso, com referências explícitas à pureza islâmica, ao martírio e à necessidade de combater a repressão à fé. A escolha da data, no final do Ramadã, mês sagrado do jejum muçulmano, adiciona mais um componente religioso à insurreição.

Do ponto de vista geopolítico, o levante dialoga diretamente com os contextos africanos da época. Muitos dos participantes vieram do Golfo do Benin e de regiões vizinhas, onde movimentos reformistas islâmicos ganhavam força. O imaginário desses africanos era moldado pelo Islã e por estruturas sociais baseadas na sharia. A chegada ao Brasil, com a imposição da escravidão, intensificou o desejo de insurgência.

A repressão ao levante foi implacável: manuscritos religiosos foram destruídos, o uso do árabe passou a ser vigiado, reuniões foram proibidas e libertos muçulmanos passaram a ser tratados com crescente desconfiança.

No Brasil, o sistema escravista era sustentado por uma complexa rede social, que incluía inclusive libertos africanos que, em certos casos, chegaram a possuir seus próprios escravizados. A sociedade baiana era marcada por uma diversidade de origens, crenças e níveis de liberdade, e o levante malê reflete não apenas um conflito entre senhores e cativos, mas entre visões de mundo em colisão.

Ainda assim, nem todos os estudiosos aceitam a interpretação da revolta como jihad e o tema é complexo e é abordado a partir de diferentes perspectivas. Há quem prefira vê-la como uma insurreição africana de caráter mais político do que espiritual, ou como uma espécie de intifada, com a religião desempenhando papel simbólico, mas não central. O debate permanece aberto, e talvez deva continuar assim, pois o Levante dos Malês desafia classificações simplistas.

O certo é que nenhuma outra revolta da história do Brasil une com tanta força religião, etnia, escravidão e violência organizada. Durante poucas horas, os malês buscaram criar um governo próprio, no qual o Corão seria a lei.

Quase dois séculos depois, a Bahia ainda guarda os ecos desse episódio. E se o tempo apagou os nomes de muitos dos envolvidos, permanece o registro de que, em 1835, o Islã, trazido nos porões dos navios negreiros, levantou-se no Brasil. Foi um momento em que Salvador viu, ainda que por poucas horas, o reflexo de uma jihad em seu chão.

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