Na última semana, acompanhamos várias manifestações acerca do exagero de procedimentos estéticos envolvendo a cantora Anitta e Lauren Sánchez —recém-casada com Jeff Bezos, um dos homens mais ricos do mundo—, porém pouquíssimas foram ao cerne da questão.
A maioria reduziu o debate à falta de amor e à rivalidade feminina. Dentro dos estudos feministas, não é novo mulheres terem discordâncias e críticas em relação à abordagem de outras mulheres. Isso não reflete o ódio entre mulheres, mas trata de romper com a visão essencialista de mulher e pôr o debate no campo teórico e político.
Obviamente não podemos atacar gratuitamente outras mulheres, inventar mentiras, imputar crime, por exemplo; essas atitudes devem ser criticadas e punidas. Mas se assustar com uma mudança radical no rosto de uma mulher pública por causa de excessos não é ódio, mas um alerta sobre uma indústria que lucra milhões impondo padrões irreais.
Audre Lorde já nos ensinou que o pessoal é político, então, como bem afirmou Caroline Arcari, escritora e mestra em educação sexual: “É possível que Anitta seja as duas coisas ao mesmo tempo: afetada por um padrão de beleza cruel e promotora ativa desse mesmo padrão, especialmente quando transforma o próprio corpo em vitrine para lucro”.
“A despersonalização dos rostos femininos, todos moldados sob o mesmo padrão, nos empurra para uma estética única, artificial. Não há singularidade. Vivemos num tempo em que o rosto feminino precisa ser constantemente corrigido, alinhado, ‘levantado’, como se fosse um erro natural. Sob a fantasia do empoderamento, o corpo da mulher perde cada vez mais espaço de expressão para se tornar campo de performance, manutenção e vigilância. Isso não é liberdade. É outra forma de controle”, conclui.
É irresponsável tratar a questão meramente como uma escolha individual, ignorando que o Brasil é o líder global em cirurgias plásticas e as várias pesquisas mostrando como a pressão estética tem adoecido mentalmente jovens mulheres. Reduzir o debate a “mais amor, por favor”, “as mulheres são desunidas” culpabiliza, novamente, as mulheres e cria mais rivalidade feminina.
Se a maioria que critica é de mulheres, isso se deve ao fato de serem o alvo principal da imposição desses padrões, são elas que estão impedidas de envelhecer em paz. Esta semana, uma empresária morreu ao fazer uma lipoaspiração numa clínica da zona leste de São Paulo, e deveríamos falar mais sobre isso. Sem falar nas mulheres de classes menos privilegiadas, as maiores vítimas de maus profissionais.
Além disso, muitas mulheres que se manifestaram aderiram a um discurso de vitimização. Mulheres com acessos não podem ser criticadas por utilizar falsamente um discurso de empoderamento? Em “Recusando-se a Ser uma Vítima”, bell hooks traz uma importante reflexão.
“Em 1984, eu encorajava as mulheres engajadas no movimento feminista a evitarem o manto da vitimização na nossa busca para chamar a atenção pública a respeito da necessidade de acabar com o sexismo, exploração e opressão sexistas. Criticando uma cisão de irmandade fundamentada em vitimização compartilhada, eu encorajava as mulheres a se unirem pelas bases da solidariedade política. Parecia irônico para mim que as mulheres brancas que mais falavam sobre serem vítimas, como escrevi na época, ‘eram as mais privilegiadas e tinham mais poder que a vasta maioria das mulheres em nossa sociedade’. E se o compartilhamento da vitimização era a razão para ser feminista, então as mulheres que eram empoderadas, que não eram vítimas, não iriam abraçar o feminismo. Meu repúdio à identidade vitimada surgiu de meu conhecimento da maneira em que pensar numa pessoa como vítima podia ser imobilizador.”
Justamente as mulheres mais privilegiadas foram as que mais se vitimizaram sem refletir sobre a estrutura patriarcal capitalista e aderiram à identidade vitimada que não busca transcender a opressão, como se nossa única escolha fosse submeter-se a ela.
Com isso, não culpabilizo quem faz procedimentos, mas questiono quem naturaliza seus excessos e essa estrutura que, nas palavras de Beauvoir, quer nos fixar no eterno feminino. Recomendo, além de Arcari, os trabalhos de Valeska Zanello e Yasmin Morais, feministas que questionam e realizam um debate honesto.
Feminismo é um movimento social e político, e isso inclui questionar posicionamentos de mulheres que contribuem para a opressão. Reunião de mulheres sem tecer relações com o social não é feminismo, é clube da Luluzinha de mulheres privilegiadas.
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