Era uma vez um projeto geopolítico regional que, concebido com a nobre ambição de fomentar a integração econômica e política sul-americana, emergiu como um farol de esperança na década de 1990. Contudo, décadas se passaram, e o que antes se afigurava como um pilar de prosperidade e cooperação, hoje se assemelha a um edifício corroído por dilemas intrínsecos, que ameaçam sua vitalidade e sua pertinência no cenário internacional.
Em sua configuração atual, o Mercosul padece de uma inequívoca de perda de dinamismo, o que demanda reavaliação estratégica profunda e inadiável. De fato, a análise dos fluxos comerciais do Brasil com seus parceiros do bloco, de 2006 a 2024, revela um quadro debilitado.
A crise do Mercosul: dados revelam perda de relevância
Se olharmos para a participação do Mercosul nas exportações brasileiras, percebemos que o auge absoluto, em termos de valor, foi atingido em 2011, com US$ 28,2 bilhões. Por sua vez, em termos percentuais, o maior volume atingido foi no distante ano de 2007, quando as exportações brasileiras para o bloco representaram 12% do total nacional.
No entanto, os dados para 2024 apontam patamar de meros US$ 20 bilhões em exportações para o bloco, que representam aproximadamente 6% do total exportado pelo Brasil. Esse declínio não é apenas nominal: ele ilustra graficamente uma aguda perda de dinamismo, um fenecer daquele que já foi um destino primordial para a produção brasileira, particularmente a que corresponde à indústria.
Ou seja, as exportações brasileiras para o Mercosul de 2011 para 2024 decresceram 29%. A título comparativo, as exportações para a China cresceram 159%; para os Estados Unidos, 68%; e para os países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), nosso terceiro maior parceiro comercial, cresceram 83,5%!
A participação nas importações do Mercosul, embora com flutuações, também não se distancia dessa trajetória de estagnação relativa, confirmando que a interdependência econômica intrarregional, outrora robusta, tem se fragilizado progressivamente. Em 2011, as importações brasileiras do Mercosul alcançaram US$ 25,4 bilhões, enquanto em 2024 o total foi de apenas US$ 19,4 bilhões. Da mesma forma, em 2007, as importações representaram 12% do total nacional, ao passo que em 2024, representaram apenas 7,4%.
União aduaneira emperra negociações e gera entraves internos
A raiz dessa atrofia reside em problemas estruturais e internos que se tornaram crônicos. A União Aduaneira imperfeita, modelo adotado pelo Mercosul, que pressupõe uma Tarifa Externa Comum (TEC) e a livre circulação de bens, revelou-se mais um entrave do que um facilitador. A TEC, em vez de ser um mecanismo coeso de defesa comercial, é sistematicamente “perfurada” por um rol extenso de exceções concedidas aos países membros, o que mina sua credibilidade e eficácia.
Tal inconsistência fomenta a chamada “guerra de portos” e desvirtua o próprio propósito da união aduaneira, que deveria promover o comércio intrazona e a competitividade externa.
Além disso, persistem inúmeras barreiras não-tarifárias – desde entraves burocráticos e regulatórios até questões fitossanitárias e de transporte – que atuam como verdadeiras muralhas invisíveis, impedindo uma integração econômica mais fluida e coesa.
A rigidez do modelo, somada à lentidão na tomada de decisões e à dificuldade de harmonização de políticas, como tributária, trabalhista, previdenciária e comercial, dentre outras, inviabilizam a agilidade necessária para o bloco se posicionar de forma competitiva no dinâmico cenário do comércio global.
Por que uma zona de livre comércio seria mais eficiente?
Diante desse cenário de erosão, a solução não passa por uma insistência teimosa em um modelo que dá evidências incontornáveis de sua exaustão. Pelo contrário, é imperativa a reversão estratégica do status de União Aduaneira para um estágio de Zona de Livre Comércio (ZLC).
Essa transição não representaria um retrocesso, mas um passo pragmático em direção à revitalização. Ao flexibilizar a obrigatoriedade de uma Tarifa Externa Comum rígida, os membros do Mercosul ganhariam a liberdade e a agilidade para negociar acordos comerciais bilaterais mais ambiciosos e desimpedidos com países ou blocos externos.
Tal flexibilidade permitiria que cada Estado-membro – com características econômicas e comerciais marcadamente distintas – perseguisse suas próprias vantagens comparativas e expandisse sua rede de comércio global, fomentando uma maior competitividade externa para todos.
Do mesmo modo, uma ZLC tenderia a ser menos impactada pelas divergências ideológicas dos governos dos Estados-membros, que virtualmente paralisam o processo decisório intra-bloco em razão de visões de mundo incomunicáveis, como as esposadas por Javier Milei, na Argentina, e Lula, no Brasil.
Um exemplo bem ilustrativo dessa paralisia contraproducente no âmbito do Mercosul diz respeito ao interesse da Indonésia em negociar tratado de livre comércio (TLC) com o bloco, tema amplamente conhecido nos círculos diplomáticos de Brasília. A negociação, contudo, afigura-se inviável à luz da deterioração das relações entre os dois principais sócios do Mercosul, Brasil e Argentina.
Nesse contexto, não apenas um TLC Mercosul-Indonésia não será possível no médio prazo (levando em conta que um processo negociador dessa natureza costuma ser demorado), mas também a negociação de TLCs bilaterais Brasil-Indonésia ou Argentina-Indonésia não serão viáveis, pois o entendimento ora vigente no bloco é o de que seus membros não podem concluir TLCs individualmente. Trata-se, como resta nítido, de uma lógica perversa, na qual todas as partes saem perdendo.
Essa perspectiva alinha-se com as análises críticas mais modernas sobre o Mercosul, que clamam por uma desideologização da política comercial e por um maior pragmatismo. O foco deve migrar do protecionismo e da coordenação estatal excessiva, que frequentemente serviram mais a agendas domésticas do que a um projeto de integração genuíno, para uma agenda de liberalização e facilitação de comércio.
Comparações com a Aliança do Pacífico expõem contrastes
A comparação com blocos regionais mais exitosos, como a Aliança do Pacífico, é instrutiva. Enquanto a Aliança se destaca pela sua agilidade, pela agenda voltada para a abertura de mercados e pela busca incessante por acordos de livre comércio com as principais economias globais, o Mercosul, por sua vez, permaneceu enredado em discussões internas, barreiras e uma postura defensiva que o isolou.
Além disso, o bloco foi, durantes os governos Lula 1 e 2 e Dilma Rousseff, bem como o tem sido na (má) gestão Lula 3, acrescido de instâncias deletérias, que, sob o pretexto de conferir uma “dimensão social” ao Mercosul, resultou na multiplicação descontrolada de talk shops sobre “temas sociais”, questões de gênero e outros expedientes diversionistas caros à agenda falaciosa da esquerda destrutiva da qual Lula e o PT são partes essenciais.
Ao contrário do que pregam os atuais formuladores de política externa do Brasil, o Mercosul não é uma vocação, muito menos um destino. Isso nada mais é do que enganosa peça de propaganda institucional travestida de fatalismo, que visa a restringir as escolhas estratégicas do Brasil ao que o lulopetismo considera adequado, e não conta com qualquer suporte estatístico e factual.
O bloco é e deve ser visto como uma escolha estratégica do Brasil, de natureza complementar às demais interações comerciais e políticas do País. As circunstâncias políticas que deram origem ao Mercosul há muito desapareceram, mas a incapacidade do bloco de evoluir e se adaptar continua a refletir uma falência de visão geopolítica e um apego a paradigmas que já não servem aos desafios do século XXI.
Nesse contexto, a persistência de uma pauta exportadora brasileira para o Mercosul com baixo valor agregado, a insuficiência política do arranjo e a percepção de uma política externa que nem sempre se alinha aos interesses nacionais mais amplos ressoam negativamente frente à realidade contemporânea.
O Mercosul precisa se reinventar para evitar a irrelevância
O Mercosul encontra-se, assim, em uma encruzilhada decisiva. Manter o status quo de uma União Aduaneira imperfeita e burocrática é condenar o bloco a uma irrelevância crescente, tanto regional quanto global.
A relativa estagnação comercial, a dificuldade de negociação externa e a falta de coesão interna são sintomas de um modelo próximo ao esgotamento.
A única via para conferir uma nova dinâmica e, porventura, resgatar alguma pertinência para o Mercosul, seria a coragem política de desmantelar a rigidez atual e abraçar um modelo mais flexível de Zona de Livre Comércio, o que espero seja possível a partir da eleição, no Brasil, de um presidente da República e maioria congressual conservadores em 2026, contexto a partir do qual haverá condições propícias a uma negociação dessa natureza com o governo de Javier Milei.
Sem essa reavaliação estratégica profunda e urgente, o que restará do Mercosul será apenas a sombra de uma promessa não cumprida, um espectro de irrelevância pairando sobre o que um dia foi um ambicioso projeto de integração. A história, nesse caso, não será gentil com a inércia.
Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa e ex-Secretário-Executivo da Câmara de Comércio Exterior do Brasil (CAMEX).