Anúncio

Cuiaba - MT / 3 de julho de 2025 - 17:33

O STF aplica o Direito Penal do Inimigo? Entenda a polêmica jurídica 

Não é possível compreender a Justiça brasileira em 2025 sem conhecer o conceito de Direito Penal do Inimigo.

O termo é usado à direita e à esquerda para criticar possíveis abusos do Judiciário. Mas nem sempre é fácil dizer se esta abordagem está sendo colocada em prática ou não. Por um motivo simples: nenhum magistrado admite estar usando o Direito Penal do Inimigo.  

Pela Constituição Brasileira, a lei se aplica igualmente a todos. A Carta Magna segue o chamado direito penal do fato. O princípio é o de que, se duas pessoas cometem o mesmo ato criminoso em condições idênticas, a pena deve ser idêntica. 

Já o Direito Penal do Inimigo — uma modalidade do que muitos juristas chamam de Direito Penal do Autor — trata com mais dureza aqueles identificados como contrários ao próprio Estado. Nesse caso, o autor do crime é mais importante do que os fatos praticados. 

O alemão Gunther Jakobs foi o principal responsável pela difusão do termo Direito Penal do Inimigo, cunhado pela primeira vez em 1985. 

Em sua obra, Jakobs distingue os criminosos ordinários dos inimigos do Estado. Nesse contexto, quem atenta contra as autoridades deixa de ser tratado como um delinquente comum.  

Por exemplo: terroristas e integrantes de facções pretendem anular a própria existência do Estado, diferentemente do que fazem ladrões e traficantes comuns. Por isso, pela ótica de alguns, eles devem ser tratados de forma distinta. Mesmo que isso requeira uma interpretação criativa da lei em vigor. 

“Günther Jakobs apresentou o conceito, inicialmente, como uma descrição empírica da prática estatal diante de certos grupos considerados altamente perigosos”, explica Victor Quintiere, professor de Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Segundo ele, ainda hoje os juristas debatem se Jakobs estava propondo um modelo normativo ou fazendo uma crítica ao sistema vigente. De qualquer forma, a influência dele é inegável.

O pai do Direito Penal do Inimigo 

Jakobs diferencia o direito penal do cidadão do direito penal do inimigo. Em alemão, os termos são condensados em uma palavra: Bürgerstrafrecht e Feindstrafrecht, respectivamente. 

No primeiro caso, o objetivo é proteger os direitos e as liberdades dos cidadãos. No segundo, o objetivo é neutralizar um inimigo que ameaça a ordem jurídica. 

Ele afirma, entretanto, que essas duas categorias teóricas podem se misturar na realidade. 

“Não se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, mas de descrever dois polos de um só mundo ou de mostrar duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penal”, ele escreve, em dos livros nos quais ele tratou da definição do conceito. 

O autor também diz que o direito penal do inimigo não necessariamente é algo ruim: “A denominação ‘Direito Penal do inimigo’ não pretende ser sempre pejorativa. Certamente, um Direito Penal do inimigo é indicativo de uma pacificação insuficiente; entretanto esta não necessariamente deve ser atribuída aos pacificadores, mas pode referir-se também aos rebeldes”. 

Abordagem distorce normas, diz defensora pública 

Boa parte dos juristas considera que a aplicação do Direito Penal do Inimigo é descabida no sistema jurídico do Brasil. 

“O Direito Penal do Inimigo é um modelo que identifica e rotula determinadas pessoas como inimigas para que não lhes sejam garantidos os mesmos direitos que são assegurados às demais pessoas. Uma vez estigmatizado, o inimigo não é tratado como sujeito de direitos, mas como objeto de coação”, afirma Bianca Cobucci Rosière, defensora pública do Distrito Federal e autora do livro 8 de Janeiro e o Direito Penal do Inimigo

Bianca acrescenta que, na prática, isso gera uma distorção dos princípios legais para punir quem é considerado um inimigo do Estado. “A abordagem em matéria criminal será implacável contra ele, com a supressão ou flexibilização de garantias no âmbito penal e processual penal, inclusive no curso da execução penal”, ela diz. 

Apesar de o Direito Penal do Inimigo ter poucos apoiadores no mundo jurídico, o grande debate diz respeito a quais são os sinais de que esse modelo está sendo aplicado.  

Críticas da esquerda e da direita 

No contexto do Judiciário brasileiro, o Direito Penal do Inimigo costuma ser usado em críticas à atuação dos magistrados. E elas vêm dos dois lados do espectro político. 

No auge da Operação Lava-Jato, muitos aliados dos réus afirmavam que a força-tarefa comandada por Deltan Dallagnol manipulava o sistema legal e carregava nas penas porque considerava os crimes de corrupção um atentado contra o Estado brasileiro. 

Em novembro de 2017, quando a Câmara debatia um projeto de lei que amenizava a punição para policiais que matassem em serviço, o deputado Wadih Damous (PT-RJ) usou o termo para criticar a proposta. “O que nós estamos aprovando aqui é a construção do Direito nazista, é a construção do Direito Penal do inimigo. É isso o que nós estamos construindo aqui nesta Casa com a aprovação, se vier a acontecer, desses projetos de cunho nazifascista”, ele afirmou. 

Já em 2021, o então deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) citou o Direito Penal do Inimigo para lamentar uma decisão que havia retirado do ar uma crítica a Flávio Dino — então senador, atualmente ministro do STF. “Não se pode entender como justiça julgados de um tribunal que mudam a todo momento, mais parecendo seguir os sabores do autor ou do réu do que dos fatos. É o famoso direito penal do inimigo”, escreveu o deputado. Erroneamente, ele atribuiu o conceito a Cesare Lombroso. 

Elogios no Congresso 

Bianca Rosière diz que, dentro do Judiciário, é praticamente impossível encontrar quem apoie publicamente aplicação do Direito Penal do Inimigo. “É um tema altamente controverso, justamente por suprimir ou flexibilizar direitos fundamentais. Por esse motivo, é difícil encontrar quem defenda abertamente esse modelo”, ela diz. 

Mas, no Congresso, há quem apoie essa abordagem. 

Em maio deste ano, o deputado Kim Kataguiri (União-SP) citou o Direito Penal do Inimigo para defender que as facções criminosas sejam tratadas como invasores externos. A lógica é a seguinte: como esses grupos dominam parte do território brasileiro e não reconhecem a autoridade do Estado, eles devem ser equiparados a um exército estrangeiro que invadiu o Brasil — e a quem não se aplicam todos os direitos dos cidadãos brasileiros, inclusive os criminosos comuns. 

Em maio deste ano, o deputado federal Coronel Assis (União-MT) defendeu a aplicação do Direito Penal do Inimigo contra facções criminosas como o PCC. “A teoria do direito penal do inimigo, embora controversa, lembra-nos de que há indivíduos que se colocam fora do pacto social e exigem uma resposta à altura do Estado. E nós precisamos dar essa resposta à altura”, disse ele. 

Victor Quintiere afirma que a legislação penal em vigor já incorpora elementos do Direito Penal do Inimigo em temas como o combate ao terrorismo e às organizações criminosas, ainda que de forma velada. Para ele, isso é “preocupante”: “A defesa explícita do Direito Penal do Inimigo por parte de magistrados é incomum, em razão de seu evidente conflito com os princípios do Estado Democrático de Direito. Na maioria das vezes, sua aplicação se dá de forma velada”, afirma o professor.

Moraes trata baderneiros como terroristas 

Mais recentemente, o grande debate sobre o Direito Penal do Inimigo tem a ver com a atuação do Supremo Tribunal Federal — sobretudo no inquérito das fake news e nos processos do 8 de janeiro. 

Ao contrário dos deputados Kim Kataguiri e Coronel Assis, o ministro Alexandre de Moraes nunca defendeu publicamente a aplicação do Direito Penal do Inimigo. Mas algumas decisões tomadas por ele geraram críticas por excederem os parâmetros legais em nome da defesa do Estado de Direito. 

Por exemplo: quebrar uma vidraça é um crime menor. Mas, no contexto do 8 de janeiro, o mesmo ato acaba enquadrado como uma tentativa de abolição violenta do Estado de Direito. 

A argumentação de Moraes por vezes parece ecoar as ideias de Gunther Jakobs. Em janeiro de 2023, em seu voto para condenar réus do 8 de janeiro, o ministro do STF tratou-os como “terroristas” (embora o crime de terrorismo seja tipificado em lei e não tenha sido aplicado neste caso): “Não se trata de meros manifestantes ou de meros crimes contra o patrimônio público; trata-se de verdadeiros terroristas que, em uma tentativa de golpe de Estado, atentaram contra o Estado Democrático de Direito”, argumentou Moraes. 

No ano anterior, no Simpósio Nacional de Combate à Desinformação, o ministro diferenciou criminosos comuns daqueles que querem a “destruição da democracia”. “As milícias digitais não são apenas grupos criminosos comuns; são organizações voltadas à destruição da democracia e precisam ser combatidas como tal”, afirmou. 

Excessos em casos do 8 de janeiro 

Bianca está convencida de que, em nome da defesa da democracia, o STF cometeu ilegalidades no julgamento dos réus do 8 de janeiro. Ela menciona, dentre outros problemas, a realização de audiências de custódia irregulares, o acolhimento de denúncias genéricas e a violação do direito à ampla defesa. 

“Além disso, o STF está processando e julgando esses acusados fora das hipóteses previstas na Constituição Federal e fora da jurisprudência consolidada pelo próprio tribunal”, afirma a defensora pública. “Fica difícil concluir que a Suprema Corte não age inspirada no Direito Penal do inimigo”, Bianca resume. 

O próprio Jakobs alerta para o uso dissimulado do Direito Penal do Inimigo. “Um direito penal do inimigo claramente delineado é, sob a perspectiva do Estado de Direito, menos perigoso do que uma mistura de todo o direito penal com elementos de regulamentações do direito penal do inimigo”, ele escreve. Em outras palavras: Ele acredita que é melhor desenvolver um sistema legal específico para lidar com terroristas e ameaças ao Estado do que distorcer as normas ordinárias para puni-los.  

VEJA TAMBÉM:

Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram
Anúncio

Cuiaba - MT / 3 de julho de 2025 - 17:33

LEIA MAIS