“Se o que você faz pode ser feito pela inteligência artificial, não há sentido. O que o Paulo Coelho faz, não tem sentido”, é o que afirmou o escritor espanhol Jorge Carrión na Feira do Livro nesta quinta-feira (19).
Em encontro de Carrión com a chilena Lina Meruane, o jornalista Rodrigo Casarin mediou a conversa de dois escritores que, apesar de falarem a mesma língua, não eram uma combinação óbvia.
O tema da inteligência artificial já apareceu no mais recente trabalho de Carrión, o livro “Membrana”. No romance, uma inteligência artificial do futuro narra temas humanos. A obra foi escrita há seis anos, antes da popularização das inteligências artificiais generativas e até hoje, como afirma o autor, elas não conseguem alcançar o que ele escreveu. “Eu quero fazer o que o ChatGPT não consegue”, afirmou.
Para Meruane, a sina do escritor de hoje é “escrever mal”, já que o ChatGPT e seus similares buscam “escrever bem”. Ela valoriza o traço humano que vive nos erros e desvios de regras gramaticais.
O diferencial humano está também no modo de pensar do autor. Meruane resumiu seu processo de maneira simples: “Quando escrevo romances vou atrás dos meus personagens e quando escrevo ensaios vou atrás de uma ideia.” Para Carrión, as ideias ficam para seus romances e as perguntas para seus ensaios.
Independente do formato, ambos concordaram que, ao escrever, é preciso provocar. “A literatura não pode acomodar, ela tem que gerar perguntas incômodas.”
Mais cedo, no auditório Armando Nogueira, Yamaluí Kuikuro Mehinaku conversou com a escritora e cineasta Rita Carelli sobre seu livro “Dono das Palavras: A História do Meu Avô”. Para uma plateia majoritariamente branca, o indígena nascido no Alto Xingu afirmou: “O índio precisa que os brancos ouçam a nossa história”.
O lançamento de seu livro garantiu à Yamaluí o título de escritor —mais uma das várias ocupações que exibe. Seguindo os passos de seu avô Nahũ Kuikuro, um dos primeiros indígenas do Alto Xingu a aprender português, Yamaluí também é tradutor, além de transcritor, pesquisador, cantor, artesão e pescador. “Só falta virar flautista de jacuí”, como disse, para ficar mais parecido com o avô.
Nahũ tem sua biografia contada em “Dono das Palavras”. Ao narrar a história do avô, Yamaluí realizou um sonho de sua família —”o meu avô voltou para mim com esse livro”, afirmou. Além de contar a história de uma das figuras decisivas na criação do Parque do Xingu, o livro também foi escrito para exigir respeito para o território indígena.
A obra, nas palavras de Carelli, “é uma revanche histórica”. Segundo Yamaluí, “o mato está acabando e o rio está secando” porque o branco ainda não aprendeu sobre preservação com os povos indígenas.
O escritor deu início e finalizou a mesa com um “canto de onça preta” na língua Kuikuro, que emana a defesa do animal das flechas do adversário. “Cantei para todo mundo sair daqui com saúde e alegria.”
Enquanto isso, no palco externo, o jornalista canadense Paris Marx falava sobre carros, tecnologia e seu “Estrada para Lugar Nenhum” com a professora e pesquisadora Bianca Tavolari. Fazendo referência à Steve Jobs, o fundador da Apple, Marx disse que o computador pessoal é o novo veículo.
Para muitos, ter um carro é uma forma de garantir o seu espaço e, na busca por diferenciação, as pessoas buscam veículos caros. Mas, como ele aponta, o que essas pessoas esquecem é que não importa o quão rico ou pobre você é, todo mundo acaba preso no mesmo trânsito.
Como contou Marx, carros self driving como o Tesla de Elon Musk não resolvem o problema do trânsito como eles se propõem a fazer. Eles são vendidos porque provocam o desejo das pessoas de ter seu próprio carro e lembram a fascinação com a ficção científica. Ao ver filmes e ler livros com tecnologias futuristas, consumidores e, principalmente, desenvolvedores de tecnologia acreditam que “aquilo é o que deve ser alcançado”, como disse Marx.
A série britânica “Adolescência”, lançada este ano pela Netflix, serviu como ponto de partida para a mesa que aconteceu às 15h30 no Palco Petrobras da Feira do Livro de São Paulo. Juliana Borges, Lola Aronovich e Luciana Temer discutiram como a violência de gênero, a misoginia online e a omissão adulta atravessam o cotidiano de jovens no mundo inteiro.
Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta, destacou como a série desmonta a ideia de que o lar é sempre um espaço seguro. “Mais de 60% da violência sexual contra crianças, por exemplo, acontece dentro de casa”, afirmou. Segundo ela, falta consciência por parte dos adultos sobre o que de fato ameaça adolescentes.
Lola Aronovich contou que conheceu o termo “masculinismo” —movimento que propaga uma suposta superioridade masculina e ataca o feminismo— apenas quando criou seu blog “Escreva, Lola, Escreva”. “Nunca tinha ouvido falar de masculinismo antes do blog. Nunca tinha conhecido um homem misógino, aliás.”
Ela ressaltou que “a misoginia é a porta de entrada para drogas mais pesadas na internet”. Aronovich foi uma das primeiras pesquisadoras a relacionar fóruns de discurso de ódio com feminicídios de fato.
Juliana Borges falou sobre como os jovens de hoje vivem uma integração total entre o digital e o real. “A minha geração ainda separa a vida real e o mundo virtual. Eu sinto que essa geração mais nova eliminou essa barreira.”
Borges também comentou o sentimento de culpa dos adultos retratado na série. “Os adultos não têm tempo de lidar com as questões dos adolescentes. Precisamos de uma escola multidisciplinar, com profissionais preparados para lidar com a complexidade dos estudantes —os professores já estão sobrecarregados.”
A mesa apontou para a urgência de escutar os adolescentes com mais atenção e de construir redes que de fato acolham seus dilemas —sem ignorar a responsabilidade dos adultos no processo.